Passa as mãos brancas pelas páginas do álbum de fotografias. As unhas pintadas de vermelho ressaltam na pele agora enrugada. Já não estranha as pequenas manchas que o tempo lhe foi desenhando. Sempre achou que o anel era demasiado grande para as suas mãos, no entanto há muitos anos que não o retira. Nunca procurou saber o nome daquela pedra clara e ovalada. Bastava-lhe sentir o peso e a nitidez do dia em que o recebera.
Detém-se numa das páginas onde uma fotografia lhe prendeu o olhar. Dobra o canto superior esquerdo como se estivesse a ler um livro e necessitasse de fazer uma pausa. Assim nunca se perderia. Saberia sempre em que capítulo da vida se tinha detido. Vê-se num vestido curto de tule, blusão de pele preto, botas com atacadores e gorro na cabeça. Está no patamar de uma escadaria com corrimão de madeira envernizada. A parede arredonda-se num azul a descascar. O janelão semi-aberto lança jorros de luz. Dança. Numa espécie de jogo, salta para não pisar a luz. Rodopia e levanta os braços. É sábado de manhã de um dia antigo.
Entre a leveza de algumas interrogações vai continuando viagem. O álbum está pousado numa cama de lençol muito branco. Algumas fotografias atravessam-lhe a nitidez do silêncio. Inspira na incerteza do que foi acontecendo e quase esqueceu. Permitiu-se gestos mais lentos. Que não avançassem os dias. Vai separando cada imagem como o fumegar vagaroso das águas. Atravessa o oceano e reconhece a noite a recortar as palavras. Ainda o horizonte aponta e é sacudida pela maré. Numa neblina cavada cobre-se de pó a voz dos que estão retratados.
Leva as mãos ao rosto. Vincos mais ou menos profundos falam-lhe da idade que tem. Dobra o canto de outra página. Repara na fotografia de vestido laranja salteado de flores. As sandálias de couro castanhas. Rasas. Para que os passos não vacilem. Coloca um pé à frente do outro e vai caminhando. A vida era uma recta naquele piso marmóreo. Nada a poderia desviar. Talvez por isso não se retratasse de corpo inteiro.
Desata o cabelo e pequenas pedras brilhantes incrustam-se-lhe na pele como se cartografassem um lugar. É um lugar de sombra onde o segredo queima. As árvores cresceram e a secura do mundo sorveu os charcos de água. Aquelas fotografias já não são reais. Ninguém as habita. Não lhe trazem memórias. Como se uma doença tivesse varrido os sinais vitais. Bifurcam-se os destinos. Ignora onde pertence. Lentamente fecha o álbum como se fechasse uma porta. Levanta a cabeça à medida que se ergue. O espelho sobre o toucador denuncia a sua imagem. Aproxima-se. Sempre a mesma visão – ela de lábios rosados, ele de cigarro na boca. O colchão a servir de cama e um gira-discos no chão. Está sentada numa cadeira com as pernas no parapeito da janela. Ele vai dançando até a música terminar. Quando ela vira o rosto fixa-a com a transparência da pedra do anel de tantos anos. Sem se aperceber vai soletrando o refrão – “all is done”.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia