A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“Tento agora imaginar o espanto dos soldados de Napoleão quando, em 1799, se depararam com aquela pedra numa fortaleza da cidade egípcia de Roseta.”

É o que se avista de imediato mal se começa a explorar o Museu Britânico. A imponência da Pedra de Roseta esmaga-nos. Queremos aproximar-nos daquela espécie de cofre de vidro em que está inserida e é difícil esse percurso de dois ou três metros que nos separam. As pessoas aglomeram-se. Como se tivessem sido atingidas por um relâmpago ali ficam. Quase subjugadas pelo poder do que à sua frente se encontra. Eu também assim fiquei. Fui-me aproximando lentamente à medida que o grupo maior se ia dispersando e, aos poucos, passei a visualizar algumas partes daquele bloco de granito negro de cerca de setecentas toneladas. Lá estava bem notória, na superfície frontal polida, a divisão da inscrição plurilingue. Três inscrições sucessivas. No topo um registo em hieróglifos egípcios, no centro um outro em egípcio demótico e, na parte inferior, um último registo em grego antigo.
Eu, que nas minhas aulas tantas vezes falei na importância da descoberta da Pedra de Roseta, encontrava-me finalmente frente a frente com ela. Não recordo ao certo o que lhe disse, mas sei que lhe falei. Lembro mais nitidamente o que ela me respondeu. Olhei-a de todos os ângulos e cada palavra que na minha língua conheço disparava no meu olhar. O cinzel do canteiro abria sulcos em mim. Deixei de ser um corpo. Era já uma pedra gravada com cada letra do alfabeto. Depois, uma parede de um qualquer templo ou túmulo repleta de hieróglifos. E fui texto colorido em papiro e códice em pergaminho. Uma folha de papel acumulada a outras folhas de papel. E fui um livro.
Tento agora imaginar o espanto dos soldados de Napoleão quando, em 1799, se depararam com aquela pedra numa fortaleza da cidade egípcia de Roseta. Passaram-se cerca de vinte anos até Champollion ter decifrado que um decreto de Ptolomeu V referia ter dotado os templos do reino egípcio com prata e trigo. Que no oitavo ano do seu mandato teria havido inundações no Nilo e que tomou medidas para que o excesso dessas águas fosse represado para os agricultores. Em troca todos os sacerdotes do Egipto lhe prestariam culto, passando a constar junto dos deuses do panteão egípcio.
Foi o meu pai que me mostrou as primeiras letras. Foi ele que me ensinou a juntar umas às outras. E disse – quando conseguires formar palavras já podes ler. Estávamos nos anos sessenta e os meus pais tinham-me comprado umas havaianas, a que naquele tempo nos referíamos como chinelos de meter no dedo. Recordo os passeios em que os dois, de mão dada, na sua cumplicidade e ternura me levavam. Eu saltitava ao lado deles fazendo com que os chinelos soltassem aquele estalido de cada vez que dava um passo. Como ainda não sabia formar palavras o meu pai informou que até não saber ler não voltaria a calçar aqueles chinelos. Um dia, em casa de um amigo do meu pai, estava um jornal em cima da mesa. Num impulso juntei as letras e li apenas para mim – “O Século”. Todos se viraram para aquela voz pequenina. Alguém disse “Olha, e o jornal estava de cabeça para baixo”. A partir desse dia uma força semelhante a uma luz de que não damos conta tomou posse de mim. Ainda não andava na escola, e, sem reflectir na revolução que se operara pensei apenas que teria os meus chinelos de novo.
De repente quis observar a parte de trás da Pedra de Roseta. Era um bloco de pedra bruta por talhar. O nó que na garganta já se havia formado há muito desatou-se. Estava agora livre para poder chorar. E passaram pela minha frente todos os que estão na parte de trás da pedra. E uma tristeza acabou por me invadir. O autor não imaginava que um dia essa face se tornasse visível e fosse exibida. Pensei então que ninguém deveria ser a parte de trás de nenhuma pedra escrita.
Em 2022 o Museu Britânico comemorou os duzentos anos da decifração da Pedra de Roseta. Milhares de egípcios assinaram uma petição que pede ao Museu para a devolver. Que todas as nações têm o direito de pedir de volta o seu património. Que a Pedra de Roseta é um símbolo do colonialismo ocidental sobre a cultura egípcia e representa um despojo de guerra com alguma violência cultural. Pode parecer ridículo, mas, depois da decifração, tal como eu quando descobri como se lia e tive os meus chinelos de volta, considero justo que também ao Egipto deveria ser devolvido esse monumental bloco de pedra.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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