A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“Pela translucidez do vidro o corpo reescreve a paixão. Toca as mãos como se o esplendor ali sempre tivesse existido.”

São nómadas as planícies quando se precipitam no abismo. Um golpe de alma a escorrer nos cabelos. Um ramo de vontades em floração. E tudo desaparece na sombra furtiva. Como aqueles breves cavalos que assomam por detrás de muros e se esgueiram de seguida. Um frasco de segredos, ainda fumegante, é encontrado junto aos frutos. Poderá assemelhar-se a uma natureza morta, que alguém há-de pintar, e dar esse mesmo título – natureza morta.
Ninguém repara na metamorfose das mãos. No dedilhar sobre o tampo de uma mesa. Ninguém repara. Se colocar as mãos em repouso e a luz vier, lenta, pousar sobre a pele criar a ilusão de limpidez, pode ser que atraia algum olhar. Talvez se vislumbre uma pradaria cansada de amassar pão ou um bibe debotado a secar ao vento. Das mãos não se falará. De como chegaram ao lugar guiadas por um mapa de pó. Ou em que poços mergulharam para se transformarem numa casa.
Dilatam-se os sinais. São preciosidades a temer. Vão longe os dias dos átomos a espalharem perfumes. Uma mulher deve ter sempre uma grinalda de flores na cabeça. Algumas aves coloridas também. Como se moveria sozinha pela berma dos canais, olhar nas janelas, rasante à água? Uma mulher tem que se transmutar. Em flor. Em ave. Talvez se obrigue a imergir para aplacar o estrondo que sempre traz em si. Cada dia será um dealbar desigual. Esmeraldas incrustadas nos olhos. Brandura da seda a derramar-se nos ombros.
O respirar ininterrupto aparece como se num sonho. O silêncio tacteia a terra. No peito um estranho tumulto desarruma a luz. É uma espécie de cegueira a devastar os rituais. Quem fará o caminho de regresso e que nome há-de entoar quando os pés sangrarem de outros trilhos? A sensação de ser amada abafa a dor. Ao redor tudo pode ser ainda noite. Há que abrir as portadas de cada gruta. Esticar os braços ao alto, reclinar a nuca e beber água fresca.
Pela translucidez do vidro o corpo reescreve a paixão. Toca as mãos como se o esplendor ali sempre tivesse existido. Na escuridão recolhe pedaços quebrados de tempo. Exibe-se desnuda. Acaba de sair do abismo. Ali sarou chagas de cavalos como se fossem suas. Uma ave vem pousar nas flores que adornam a janela. A voz ao longe tem passos de chuva. Que caia a água. Que se banhe. O pescoço alongado será poema numa pintura que Modigliani eternizará.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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