A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Um afluente nunca chegará ao mar. Terá que desgastar pedras e expurgar as margens até se encontrar com um curso de água mais importante.”

Afluente – uma corrente de água que alimenta ou desagua noutra corrente maior. Pode dar-se o caso de se formar um lago. Neste lugar fechado, cercado de terra, as palavras vão mirrando, vedadas a qualquer rio. Um sufoco que o lodo pode agudizar. Os pés presos a tentarem arrastar os passos. A gestação a dividir-se entre emergir ou permitir-se ser sedimento e nutriente para outra espécie de palavras. Dessas que amam a sombra e vivem de uma tristeza bonita. São sempre palavras onde as premonições se agarram como se quisessem resistir. Lavam-se pelo percurso da noite e às vezes ouvem nomes que as acordam. Então, levantam as mãos e exibem grinaldas de luz.
Um afluente nunca chegará ao mar. Terá que desgastar pedras e expurgar as margens até se encontrar com um curso de água mais importante. Da confluência advirá a abundância. Aqui, novas palavras nascerão. Num fluir generoso deixar-se-ão levar pela corrente. Quando extenuadas descansarão no leito do rio. Há palavras que sabem vogar e que de um golpe levantam o mundo. Serão fecundas e atingirão o mar transportadas em fragmentos de rochas antigas. Barquetas de lábios em uníssono. A falarem a mesma língua.
Alguém diz um dia – vamos criar afluentes que cheguem ao mar. À primeira convocatória pode parecer que nada se altera. Que a terra continua o seu movimento de rotação e que o sol não se moverá. Mas eis que uma dobra de pensamento traz a ideia de repetição na narrativa. E outro alguém dispara o impossível e o vazio. Também na poesia. Para onde se apressarão então as palavras? Serão capazes de abarcar o sol abrasador ou a tinta dos pintores? Há doze anos que homens e mulheres respondem à chamada. Desconhecem que o número doze pode ser a multiplicação da criação. E como se numa última ceia ali se reúnem na esperança de que não seja a última. Ouvem-se uns aos outros com as palavras que trazem de longínquas origens. Algumas atravessaram oceanos. Outras saltaram pontes. O rio sempre presente. O mar como infinito. E o homem do leme a levar, discreto, a embarcação.
Não há desertos nas raias. Há quem tenha percorrido essas linhas imaginárias para descobrir novos linguajares. Quilómetros de folhas brancas tingidas por sons e símbolos. Um princípio de incerteza que se transforma em alimento e se lança ao vento para que seja semente. Talvez como as raias, esses peixes cartilaginosos, as palavras se vão instalando ao longo do leito marinho. Talvez necessitem, por instantes, de repousar sobre bancos de areia. Quem sabe não existam mesmo raias rítmicas. Ou raias sonoras. Se nos sentarmos nas rochas a vida inteira pode ser uma descoberta. Aí aguardamos todos os afluentes e as palavras inteiras que com eles virão. Levantamos as vozes e alongamos os gestos. Abraçamos as palavras. Abraçamos os poetas. E nessa paz percebemos que o poema não terá fim. Que nunca será ruína.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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