A saia rodada ao dançar e os pés em pontas tornam-na mais esbelta. Sente que o seu peso diminui e, sobre os ombros, nada mais existe do que o reflexo do enorme candelabro. Das paredes solta-se um pó dourado que marca trilhos no chão de mármore. Cada manhã é sempre a primeira. Acorda com a luz que atravessa as cortinas e lhe toca tímida o rosto. Aproxima-se da janela, abre as enormes vidraças com caixilhos de madeira e debruça-se sobre o vão que medeia o quarto e a rua. O rio ao longe tem a cor das manhãs da infância.
O mapa aberto ao fundo da cama evidencia uma encruzilhada de linhas coloridas e direcções incertas. Ainda não se habituou ao ritmo da grande cidade. Os semblantes turvos das pessoas perturbam-na. Já não entra receosa no metro, mas quando olha ao seu redor uma imobilidade toma conta dela. Sente falta de caminhar à chuva, de alongar as mãos. Sempre acreditou ser cada gota de chuva uma lagoa demorada. O ritmo da viagem começa a tornar-se maquinal e a estação de saída uma leve nuvem à espera de sol.
Num ritual entra no café ao lado da galeria de arte onde trabalha. Habitualmente chega mais cedo para poder fruir esse momento. Senta-se na mesa do costume, pede um café com leite e abre o livro que anda a ler. Alheia, com o cheiro adocicado e fumegante a soltar-se da chávena, invade-se-lhe a memória daquele pó dourado que vai cobrindo o chão do seu quarto. Um homem a duas mesas de distância, poucos anos mais velho, tem vindo a reparar nela. Uma premência em tudo conhecer sobre aquela mulher quase o esmaga.
Nesse final de tarde a calçada expande a sua alma e o desejo acaba por o subjugar. Aguarda, faces rosadas, a hora de saída. O que experimenta baralha-o. Algo nele transborda e lhe aperta os pulsos. É urgente o abraço. Sentir as formas e os recortes do corpo dela. Caminhar lado a lado. Inflamar num sopro o seu cabelo. Falar-lhe do silêncio que arrebata a palavra.
Alguma coisa arde e se move devorando a intimidade ignorada. Há um rio subindo em desamparo até ao olhar de ambos. Um barco embatido pelo vento no desacerto dos dias. No galope do sangue se aquieta uma ave lenta como a luz que cai na noite desse dia. É uma imagem singular aquela que se pode observar enquanto chove. São duas sombras divididas até que a lucidez do poema se transforme em espelho um instante. E esse instante tímido o tempo todo lavra nas suas mãos.
Então, sondam a pele um do outro e uma crepitação agiganta-se pelas ruas. Os seus passos cânticos arrastados. Ela murmura-lhe que sempre o aguardou. Está viva e dança. De vez em quando descansa a cabeça no peito dele e um fogo modela o espaço. A chuva envolta num pó dourado abre sulcos na solidez do caminho. Já não se perde na cidade onde apenas os dois sabem que existem. Talvez desapareçam um dia. Mas o vento encarregar-se-á de os unir de novo.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia