“Centro Histórico”

Escrito por Fidélia Pissarra

“A Carta Internacional para a salvaguarda das Cidades Históricas (1986), redigida pelo Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios, vem reconhecer que todas as cidades importantes têm interesse histórico pela simples razão de revelarem o desenvolvimento da multiplicidade de comunidades ao longo do tempo.”

Quando tanto se discute o centro histórico, a recuperação e rentabilização desse espaço, não será completamente descabido reflectir um pouco sobre esse conceito que, como tudo na vida, impulsionado por factores variados, permanece em constante evolução. Se não vejamos, em 1931, a Carta de Atenas, sem o referir directamente, estabelece critérios para a preservação de edifícios antigos, realçando a ideia de os monumentos serem o testemunho vivo das tradições. Ideia que, por cá, muito terá inspirado o Estado Novo, desencadeando, por todo o país, a leva de monumentos “recuperados” que todos conhecemos. Passados 33 anos, a Carta de Veneza estende o conceito de monumento histórico aos sítios com vestígios civilizacionais que representem uma fase marcante do passado. O testemunho vivo das tradições seculares deixa, assim, de ser restringido às edificações arquitectónicas para passar a abranger lugares. Em Quito, o centro histórico passa a definir o espaço sujeito ao emaranhado das relações humanas que aí se foi tecendo ao longo do tempo, caracterizando-se pela sua identidade e aparência. Pereira de Oliveira, doutor honoris causa pela Universidade do Porto, há de reparar mais tarde que o conceito de centro histórico é «atemporal porque eminentemente cultural», ou seja, é à luz dos valores atuais que se define o que é verdadeiramente histórico. A Carta Internacional para a salvaguarda das Cidades Históricas (1986), redigida pelo Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios, vem reconhecer que todas as cidades importantes têm interesse histórico pela simples razão de revelarem o desenvolvimento da multiplicidade de comunidades ao longo do tempo.
Em suma, o conceito de centro histórico, tendendo a definir a malha urbana, frequentemente escondida e deserta das cidades, assenta muito na homogeneidade arquitectónica e urbanística, representativa de valores culturais e afectivos cuja memória deve ser preservada enquanto referência identitária. O que nos pode levar a concluir que, não existindo essa identidade, não basta haver um conjunto de edificado antigo, mais ou menos degradado, para conferir ao espaço abrangido o carácter de centro histórico. No caso, particular, da envolvente da nossa catedral, se no sentido de dois dos pontos cardeais podemos observar que ela até possa existir, já no sentido dos outros dois, como é evidente, isso não acontece. Portanto, mesmo não pretendendo desclassificá-lo, à luz dos critérios citados esse lado também não se poderá, com propriedade, incluir na categoria visada, porque há muito que foi corrompido.
Sem dogmas, “recuperá-lo”, no caso, particularíssimo, do espaço onde existiu uma casa que albergou a legião, reparando no reparo de Pereira de Oliveira, prender-se-á mais com a imagem de marca do centro histórico que se quer vender e com a função urbana que se lhe quer atribuir, do que com a preservação de um edificado que não deixa de ser uma (des)construção no meio da sala de visitas. Minorar a importância da decisão, sobre como o fazer, através de um concurso de 3 ideias disfarçado de “consulta pública”, dirá muito mais sobre a incapacidade e falta de visão estratégica (podendo divergir da de cada um) de quem gere a cidade, do que da sua alegada magnanimidade democrática.

Nota: A referência à Nova Carta de Atenas aguarda melhor azo.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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