12 romances com atmosfera guardense: uma viagem imóvel à Guarda através da leitura

Escrito por Thierry Santos

“No campo da literatura, a poesia e a narrativa mantêm, não raro, com lugares reais uma relação dialética: há lugares que inspiram uma obra literária e há obras literárias que conferem valor a um determinado lugar. “

Fazendo parte do campo das representações, o imaginário alimenta-se de lugares reais e fictícios ao projetar neles saberes, desejos, memórias, sonhos, medos e esperanças. Tal impulso imaginativo gera uma dinâmica criadora de imagens e narrativas.
O imaginário de um lugar como a Guarda tem, por um lado, a ver com o conhecimento e a experiência dos seus espaços urbanos, das suas particularidades geográficas e climáticas, da sua história local e, por outro, com a socialização em diversos grupos da comunidade, saberes de tradição oral, boas e más vivências pessoais associadas à urbe. São esses os principais componentes do imaginário coletivo que marcam, de forma consciente, a própria comunidade guardense. Quem melhor, senão os artistas, os arquitetos, os poetas e os escritores, para interpretar e trabalhar esse imaginário?
No campo da literatura, a poesia e a narrativa mantêm, não raro, com lugares reais uma relação dialética: há lugares que inspiram uma obra literária e há obras literárias que conferem valor a um determinado lugar. Na prática, tais textos participam do processo de construção da imagem desse lugar, ora apostando na sua renovação, ora insistindo no estereótipo ao qual é associada.
Daí impôs-se-nos a curiosidade de observar as representações da Guarda, com base num “corpus” de 12 romances que a tem como pano de fundo, em parte ou na totalidade do enredo. A partir de meados do séc. XX e mais ainda no séc. XXI, romancistas transfiguram a cidade, tornando-a num lugar literário, algures entre o real e o imaginário. Como qualquer cidade, a Guarda possui características que a definem como única; as mesmas são selecionadas e aproveitadas para compor o ambiente das cenas interligadas pela narrativa. Os cenários, ora distópico, ora risonho, ora descrito com ironia, variam consoante as épocas e os subgéneros romanescos: a ficção histórica, a biografia, a trama policial, a ação e aventura, a lenda, o romance militar, as narrativas de memórias, de formação e do absurdo. Poucos autores se atrevem a situar a Guarda no tempo em que a obra ganhou forma. A maioria enquadra a cidade num passado histórico, distante ou recente. É o carácter arcaico ou provinciano do tecido urbano que tende a inspirar os autores. Retratam uma cidade serrana do Interior, que acompanha penosamente a evolução dos tempos. Protagonistas partem da urbe para melhor regressar, outros vivem como que enclausurados no seu labirinto, alguns deixam-na de vez enquanto forasteiros nela atuam temporariamente. Por vezes a Guarda não tem nome, por vezes nem sequer se chama Guarda. Nela evoluíram ou evoluem figuras como o médico, o padre, o “pide”, o amante, o barbeiro ou o advogado, que têm a particularidade de gerir segredos e confidências. As mulheres desempenham papéis secundários.
A Guarda atual revela-se-nos quando lemos “Toleimas e Paranoias nos Arrabaldes da Sé”, de J. Margarido. O Manuel Carrilho sabe, como poucos, viver a Guarda, sentado numa esplanada dos Balcões, e somos impelidos a visitar a Sé e os seus recantos. Ao compulsarmos “O Último Duque”, de C. Carvalheira, ficamos intrigados com a visão histórico-lendária de ambiente quatrocentista, e somos instigados por Pero Lopo a descortinar a Guarda judaica, e a espreitar as terras circundantes como Mizarela, o Tintinolho ou o Jarmelo. Ao lermos “1882: o Ano do Comboio”, de R. Pissarra, é-nos dada a possibilidade de mapear, seguindo os passos de Pedro Ruiz, a Guarda de Oitocentos, com a sua Torre do Mirante das Freiras, a sua estrada para a Vela e o caminho da Estação, e de a comparar com a Guarda dos nossos dias. Ao mergulharmos em “O Segredo da Lagoa Escura”, de N. M. Valente, somos induzidos a participar da famosa expedição científica à Serra da Estrela, conduzida por Sousa Martins, entre outros, com paragem na Guarda de 1881. Ao folhearmos “Glória em Sangue”, de N. de Montemor, descobrimos a Guarda castrense que o autor descreveu com o conhecimento de quem a viveu por dentro e avistamos ao mesmo tempo aquele Portugal taciturno dos últimos anos da monarquia. Em “O Bisavô”, de M. J. Lopo de Carvalho, ficamos a conhecer as famílias Caroça, Lopo de Carvalho e Balsemão, mas também chegamos a Pêro Soares, onde Manuel Caroça mandou construir a casa que inaugurou em 1939. Ao saborearmos “Último Acto em Lisboa”, de R. Wilson, deparamo-nos com a bravia paisagem beirã e com os volframistas que se reuniam num restaurante da Guarda nos anos da II Guerra Mundial. Ao percorrermos as páginas de “Manhã Submersa” e de “Estrela Polar”, de V. Ferreira, recordamos a cidade de altitude dos anos 40 e 50, onde jovens de batina preta podiam ser afrontados por um broeiro, e somos assolados pela vontade de calcorrear as ruas graníticas que Adalberto Nogueira costumava palmilhar para intuirmos o dédalo em que se perdeu. Ao lermos “No Seminário Maior”, de J. T. Martins, somos convidados por Marcelo a penetrar nessa discreta instituição guardense, desassossegada pelo Concílio do Vaticano II, como também nessa sociedade portuguesa, dividida entre tensões e esperanças. E com Marcelo lamentamos também a falta na Sé de um órgão de tubos. Quando lemos “Um Café no Centro da Cidade” e “Bairro da Caixa”, de C. Adaixo, devolvem-se-nos memórias dos anos 60 e 70, e deparamo-nos também com uma Guarda que ainda é e já não é, tendo em conta os novos polos de consumo e locais residenciais, as lojas e os cafés extintos, os sinais de degradação e renovação. E é nesse momento que nos apetece fechar os livros e revisitar a Guarda real, vendo-a com olhos de quem cultiva a memória afetiva estimulada pela literatura.
Pela certa, entre a fundação de um lugar mitificado e a cidade reinventada, a literatura atesta da vontade de celebrar a Guarda de sempre, fosse ela mais estimada por todos…

Sobre o autor

Thierry Santos

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