A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

“As árvores sabem o quanto as admiramos na sua forma de encarar a morte. A cor das folhas a desbotar, a pele a enrugar, até se deixarem cair como só elas conseguem. Lentas, isentas de dor. São notáveis no seu exemplo insuspeito.”

Gosto da luz que anuncia o final de Verão. Lembram-me as cores que hão-de vir sobre as folhas de certas árvores quando se vestem cerimoniosamente para a festa equinocial. Gosto das mãos coloridas a tocar-lhes a pele como mandalas tatuadas a henna. Suaves luvas tingidas de pétalas. Jóias vibrantes que lançam um bálsamo oculto sobre palavras sagradas. Quando tocam as folhas germinam oferendas, póstumas cores como se renascidas.
As árvores exibem-se agora para que as observemos. Adivinham o nosso olhar. Há uma árvore que vou admirando na sua exactidão. A cada dia que passa lhe descubro outra e outra folha dourada. Quando atinge o máximo esplendor abraçamo-nos. Sento-me sob aquela cortina rendilhada e permito-me acompanhar o tempo. Numa oscilação sensual inclino a cabeça para trás e tenho a certeza de ser assim que ela me olha. Quando o chão se cobre de um manto seco gosto de o sentir estalar sob os meus pés. É como se o silêncio se quebrasse e uma paisagem sonora juntasse todos os sons. Ou a luz incólume como num enigma perfurasse as pedras numa babel de cores desamparadas.
As árvores sabem o quanto as admiramos na sua forma de encarar a morte. A cor das folhas a desbotar, a pele a enrugar, até se deixarem cair como só elas conseguem. Lentas, isentas de dor. São notáveis no seu exemplo insuspeito. A cada translação conhecem o que sempre fora anunciado. Absorvem toda a luz possível e, numa mistura doce, vão decifrando os insectos que teimam em as rodear. Eu abro-lhes as mãos numa oferenda de pausa e renovação. Se oscilo no início é porque uma casa perfumada principia em mim. Como se a eternidade se repetisse.
Gosto da luz a derramar-se sobre pele. Em breve amadurecerá a lembrar a cor com que as romãs nos hão-de tentar. Há sempre uma certa magia no instante em que lhes rasgámos a pele. A coroa a desmoronar-se como um reino partido em dois. Os bagos a convocar à festa de um sangue adocicado na boca. As mãos tingidas são passaporte para outras paragens. O tempo que desejámos transbordar de vinho quando amolecer sobre a terra. Algumas sementes anunciarão a ordem das coisas. Os despojos das auroras sobre a espuma do mar. Ou um fragmento de melancolia.
Enquanto escrevo este texto o sol varre a minha varanda. Abro as janelas e digo à minha gata que vá, que aproveite esse sol morno. Acaba de regressar. O céu escureceu repentinamente. Sem querer dou com o meu reflexo na vidraça. A cor do cabelo não é a das folhas de certas árvores, nem tão pouco a dos frutos desta época. Por segundos entristeço. Algumas palavras alojam-se no seu redil por instantes. Ignoro se adormecidas sem peso como deuses envelhecidos sem espelhos. Só depois me lembro que ainda não é chegado nem o dia, nem a hora da festa para que fora convidada. Um dia, quando eu morrer, que seja num Outono. Que me vistam de cores ocres e fulvas e que o sol me beije de luz os cabelos. Alguém recite um verso bucólico, serenamente. E que num banquete se abram romãs maduras.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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