Cara a Cara

«Havia coincidências muito interessantes entre mim e Eduardo Lourenço»

Lídia
Escrito por Efigénia Marques

P – Como recebe o Prémio Eduardo Lourenço 2023?
R – Sinto-me muito honrada porque, ao longo dos anos, este prémio tem vindo a reconhecer figuras com importância imensa no domínio da cultura, quer do lado português, quer espanhol, sendo este um prémio que junta duas culturas e distingue as figuras que os júris consideram representar essa união. Eu não esperava por este prémio porque fui muito próxima de Eduardo Lourenço e nunca poderia imaginar que houvesse alguém que, longe e sem me dizer nada, estivesse a propor-me para este prémio. Foi uma surpresa muito grande. Sinto-me muito feliz e muito honrada por ter este prémio com o nome do Eduardo Lourenço que, para além de toda a admiração que ao longo da vida manifestei e tenho pela sua obra, foi um grande amigo. Não podia ser melhor ter estas duas componentes – a de um respeito imenso por aquilo que foi a figura singular de Eduardo Lourenço e a amizade que nos uniu ao longo de tantos anos.

P – Como era a sua relação com Eduardo Lourenço?
R – Era uma relação intelectual. Falávamos infinitamente sobre os temas do mundo e partilhávamos a vida como um, como amigos. Éramos amigos e, como ele era muito efusivo, muito criança e muito juvenil, havia momentos de convívio absolutamente encantadores. Havia esses dois lados e naturalmente que aquilo que mais me transmitiu foi conhecimento sobre o mundo e é assim que continuo a ler a sua obra e me lembro dos encontros infinitos que tivemos. Mas, de facto, o domínio intelectual, a troca de ideias e essa coisa maravilhosa que é falarmos uns com os outros, com pontos de vista muitas vezes diferentes, mas querendo compreender o que se passa à nossa volta. E entre nós havia coincidências muito interessantes: ele é um melómano e eu não sou uma perita da música, mas percebi que ele tinha escolhido a “Tocata e Fuga”, de Johann Sebastian Bach, como a sua música fundamental… E também eu a escolhi para epígrafe, como tema para o conto “O Organista”. Quando vi que, sem saber, eu tinha escolhido a mesma música, percebi que havia uma corrente profunda de entendimento entre nós. Isso é a amizade entre pessoas que não têm outro interesse que não seja o entendimento e amizade profunda.

P – Durante a entrega do Prémio referiu que tem vários postais de Eduardo Lourenço guardados. Pondera cedê-los ao espólio patente no Centro de Estudos Ibéricos?
R – Sim, possivelmente farei isso. Irei guardá-los e entregá-los à Guarda. De certa forma, esta é a “casa-mãe” dele, próximo da terra onde nasceu. É a cidade que Eduardo Lourenço reconhecia como cidade de origem e, por isso, possivelmente é o que irei fazer. O Eduardo enviava postais a todos os amigos, eu serei uma dessas pessoas e talvez outras queiram fazer o mesmo que eu e enriquecer o espólio do Centro de Estudos Ibéricos.

P – 2023 foi um ano importante e marcante na sua carreira?
R – De facto está a ser um ano marcante. Nunca sabemos o que vai acontecer, mas durante todo o percurso gerou-se – principalmente a partir deste último livro, “Misericórdia” – uma espécie de consenso em torno de que “eu era capaz de escrever um livro que interessasse às pessoas”; um livro que fosse transversal às idades, às culturas, aos vários tipos de sociedades que existem na nossa sociedade e isso está a ser muito gratificante e surpreendente para mim porque escrevi este livro com aquela ideia da Virginia Woolf, de que «a literatura sai sobretudo da circunstância não literária». Este livro sai de uma circunstância absolutamente não literária, pelo que me dá esta surpresa de as pessoas o considerarem literariamente válido e com uma mensagem que acho que diz ao nosso tempo. Até porque as pessoas estão a interpretar “Misericórdia” não só como um título adstrito à própria narrativa, mas também como título simbólico para os momentos que estamos a atravessar – a escuridão que a personagem enfrenta com uma atitude angélica, de quem enfrenta o desconhecido, tem sido interpretada aqui e noutras culturas como a atitude que estamos a ter perante a escuridão deste momento. A palavra “Misericórdia”, que usei tanto a medo porque era uma palavra solene, religiosa, ontológica, demasiado exigente… acabou por vir ao encontro de uma demanda do momento atual.

P – Enquanto Conselheira de Estado, como avalia o momento que Portugal está a viver?
R – Vivemos um momento delicado porque a sociedade está sob suspeita e as democracias estão em perigo completo. A cultura digital e a do momento é tão agressiva que não deixa possibilidade de manter admiração entre as pessoas. Quando não há possibilidade de manter admiração uns perante os outros, não há possibilidade de manter laços que sustentam as democracias. As democracias sustentam-se nos laços da admiração mútua e da cumplicidade. Nestes momentos a linguagem é exagerada e hiperbólica no ataque, na violência verbal, e isso está a minar as sociedades e a criar atração pelos extremos. Os jovens, que não têm um passado como as pessoas mais velhas tiveram, querem algo diferente do que estão a viver e pensam que apostar no surpreendente, aberrante e absurdo até, lhes trata uma solução – mas nós, mais velhos, sabemos que não é assim.

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LÍDIA JORGE

Vencedora do Prémio Eduardo Lourenço 2023

Idade: 77 anos

Naturalidade: Boliqueime (Algarve)

Currículo: Licenciou-se em Filosofia Romanica pela Universidade de Lisboa e chegou a ser professora de ensino secundário em África durante os anos da Guerra Colonial e chegou a ser professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa entre 1995 e 1999. Foi membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social e fez parte do Conselho Geral da Universidade do Algarve. Em 2021 tornou-se Conselheira de Estado até 2026. Em 1980 lançou o primeiro livro “O dia dos Prodígios”; “A costa dos Murmúrios” em 1988; “Os Memoráveis” de 2014 e “Misericórdia” lançado no ano passado. Lídia Jorge venceu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores 2002 e 2022; Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas em 2020; Premio Médicis Estrangeiro 2023 e Prémio Eduardo Lourenço 2023.

Livro Favorito: “Orlando”, de Virginia Woolf

Filme Favorito: “Andrei Rublev”, de Andrei Tarkovsky

Hobbies: Passear entre as árvores ou à beira mar

Sobre o autor

Efigénia Marques

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