Nunca soube de onde viera ou a que terra pertencia o Tróia. Vivia na aldeia como um forasteiro. Trabalhava ao dia em troca de alimentação e dormida. Nem sempre recebia salário e, quando acontecia, cada um lhe dava o que entendia. Ele sabia que valia mais, mas contentava-se com pouco. Não tinha família para sustentar e as parcas moedas seriam suficientes para, ao domingo, correr aos cafés e gastá-las em vinho.
Desconheço ainda hoje, muitos anos depois, a origem do seu nome. Criança que era não me questionava sobre assuntos de onomástica. Soava, no entanto, estranho não existir mais ninguém assim chamado. Nesse tempo o mundo era a aldeia. Acordar com o crepitar das giestas a acender a lareira e, dali a pouco, com o eterno cheiro a café da avó. O dia decorria entre as brincadeiras de rua e a força dos braços que me amparavam. A noite quando descia coincidia com o sono.
Só os domingos se distinguiam dos restantes dias da semana. A avó, sempre cumpridora de horários, apressava as andanças antes da missa. O sino tocava três vezes intervalando com silêncio. Ao terceiro toque a missa iria começar. Chegávamos sempre antes. A avó, uns passos à frente, marcava o ritmo ao subir a tapada. Por ali seguíamos de modo a cortar caminho para a igreja. Depois de almoço a vida acompanhava o ritmo das horas. Não fosse a roupa domingueira e os conselhos para não me sujar, as brincadeiras seriam as de todos os dias.
Nos cafés o cheiro a tabaco espanhol era rei e as cascas de amendoins estalavam debaixo dos pés. Os homens jogavam às cartas, falavam alto e riam muito. Era dia de endireitar as costas e esquecer tarefas mais árduas que a terra e o gado sempre impunham. Quando ao longe se ouviam os primeiros sons da concertina concentrava-se a garotada como se o encontro tivesse hora marcada. Assim se fazia a ronda pelas ruas da aldeia até entrar num dos cafés para se iniciar o bailarico.
De repente as ruas enchem-se daquela típica algazarra a que nos habituara também o domingo. O Tróia vinha bêbedo. Passava de imediato a ter um cortejo de crianças que o seguiam só para o verem cair. Eu ia atrás. Ouvia as provocações e insultos, os risos de escárnio e assistia às rasteiras que lhe faziam para assistirem às quedas. Como se o Tróia precisasse de ser rasteirado para cair.
O Tróia não vestia roupa de domingo. Um casaco castanho remendado por cima de uma camisola desfiada, calças com joelheiras e umas botas castanhas. Recordo bem essas botas que quase não pousavam no chão. À distância vejo-lhe agora umas pequenas asas nos calcanhares que lhe permitiam levitar. Seriam o seu ponto vulnerável e cada rasteira era como uma flecha no calcanhar de Aquiles. Tombava, mas, ferido no rosto e na testa, voltava a erguer-se. Como Heitor quando em luta com Aquiles.
Tróia, reconheço hoje, era belo. De pele muito branca, olhos profundamente azuis e corpo moldado pelo esforço do trabalho diário que nunca negava. Tivesse servido de modelo a um escultor e assemelhar-se-ia a um qualquer deus grego. Mas Tróia não tinha nenhuma Helena que o amasse ou por quem ele pudesse dar a vida. O seu pai não era Príamo nem o seu irmão Heitor. Tróia era a própria cidade. A fortaleza que se levantava sempre que era humilhada ou atacada. O seu corpo era mortificado e arrastado todos os domingos pela vingança de Aquiles.
Tróia era um homem de honra por isso nunca percebera as investidas de que era vítima. Ao fim do dia de domingo só necessitava que lhe lavassem o corpo e lhe ungissem as feridas. A alma continuaria anestesiada até de manhã. Mas ninguém lhe faria tal serviço. Ao meu avô, que muitas vezes lhe estendera a palha, dizia – gosto de si. O meu avô perguntava porquê ao que ele respondia – porque não me bate. Acabava por cair no sono como num precipício. Jamais ouvira falar de Eneias, mas dentro da sua solidão sonhava com uma espada. Talvez um dia edificasse uma nova cidade. Pela manhã, aos primeiros raios de luz, havia de se levantar da cama de palha que alguém lhe dera nessa noite e recomeçaria a semana como se renascido das cinzas.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia