Saille*

“Quando escrevo, é frequente retirar palavras e acrescentar paisagens. E nas palavras que sobram, exercitadas e enxutas, misturo um perfume que as orienta na névoa em que as deixo perder de mim.”

1. Os ingénuos e os diletantes pensam que o 25 de Abril foi uma erupção popular em direcção à terra prometida. Não foi. Vou tentar dar as respostas certas:
a) Em plena guerra fria, os EUA e a União Soviética queriam juntar mais uma fatia às suas zonas de influência. Os antigos territórios ultramarinos eram muito apetecíveis. O golpe militar teve mãozinha dos americanos, mas o trabalho posterior no terreno teve os soviéticos por detrás. Sobretudo o trabalho sujo em África (a Cita Vales que o diga, se pudesse), pois na metrópole cedo desistiram de criar uma Cuba na Europa ao perceberem que a NATO não ia deixar;
b) Elevar os rendimentos da maioria da população, mediante o recurso à sopa dos pobres da UE, de modo a podermos consumir o que a Europa tem para vender;
c) Aparecimento de self made man como Joe Bernardo, magnatas como Salgado, democratas como Sócrates, “dirigentes” desportivos como Pinto da Costa e Vieira, a chamada ética republicana, colossos como Galamba e outras estirpes de sapos que engolimos com regularidade e uma vaga satisfação. Afinal, consumimos como os alemães e produzimos como os cipriotas!
d) As revoluções tout court são, num primeiro momento, simples alterações da cúpula do poder. Depois, poderá ou não existir uma substituição de regime e nova ordem constitucional. No entanto, as mudanças profundas são de ordem cultural. A evolução nasce do incrementalismo e não da disrupção.
2. Estou especialmente atento a certos pormenores do comportamento. Um deles, é o aperto de mão. Que funciona como um teste do algodão. Há o fugidio, protocolar. Há o longo, demorado, que denota uma proximidade que já existe ou se deseja. Ou sinaliza um reencontro onde substitui o abraço. Há o transpirado, que, embora neutro, revela um certo desleixo. Há aquele com o polegar separado, desportivo, jovial, viril. Há o delicado, muito comum entre homem e mulher, que revela cortesia e algum desconforto, pois o natural seria um par de ósculos (grande trocadilho, verdade?). Mas há dois que são o creme de la creme. O primeiro é o viscoso, negligente. Parece que estamos a apertar um bocado de borracha. Está lá tudo o que é preciso saber. Por fim, há o vigoroso, olhos nos olhos, com o timing certo. Esse não engana ninguém e duvido que alguém se sinta enganado.
3. Todos nós definimos um papel para os nossos planos, na arquitectura da existência. Impossível negar tal evidência. Mas o reconhecimento não afasta a suspeita de que isso não chega. Na juventude é comum não se fazerem planos. Talvez porque se deu de barato que, algures na reserva inesgotável de tempo ao nosso dispor, eles se tornarão supérfluos e descartáveis. Mais tarde, esse desprendimento persiste sob a forma de recatado cepticismo. Mas é igualmente comum traçar-se muito cedo um plano. Com a confiança imparável de quem o olha como um instrumento do destino. A execução e os resultados desse plano são tão desiguais quanto surpreendentes. Dependem da forma como os seus tempos de espera são medidos, ou as atribulações o mantêm de pé. Seja como for, ele não deixa de ser o nosso plano, a morada exclusiva dos nossos sonhos. Porém, mais cedo ou mais tarde, é-nos dado perceber a dimensão e a natureza de tamanha empreitada. A sua fundamental contingência. E uma revelação ocorre. Não tanto que o plano só tenha existido para deixar de ser nosso. Ou que acabe por se diluir no caos desesperante do mundo. Mas, sobretudo, que o “nosso” plano, por fazer parte do plano desse mundo, não deixou nunca de ser um sonho partilhado. Um despojo comum reunido pelo acaso.
4. Quando escrevo, é frequente retirar palavras e acrescentar paisagens. E nas palavras que sobram, exercitadas e enxutas, misturo um perfume que as orienta na névoa em que as deixo perder de mim. Mas essa fragrância não é gratuita. Se as palavras forem de guerra, ao leitor chegará a cordite dos explosivos, não o sangue das vítimas. Se forem de amor, ao aroma essencial faltará sempre um toque final, que só o leitor pode criar.

* No calendário das árvores celta significa “salgueiro”

** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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