Um autarca desabafava, há dias, que é cada vez mais difícil arranjar listas de candidatos às Juntas de Freguesia. Coisa, dado o persistente envelhecimento e míngua de população, facilmente aceitável. Dizia ele, o autarca, que pior do que já não haver gente era o perfil dos que restavam não se adequar, minimamente, às funções para que se candidatariam. Obrigando a, nalguns casos, importar candidatos de outras terras. O que não pretendia ser mais do que aquilo que foi, um desabafo, acabará por desembocar no exercício, pouco assumido, de expurgar o resto da conversa dos incontornáveis elementos de exiguidade e distopia que involuntariamente se lhe iam colando. O que, ainda assim, não impediu a conclusão óbvia: não havendo muito por onde escolher, socorremo-nos desta instituição nacional, em que se tornou o hábito de passar uma esponja sobre quase tudo, e resignamo-nos ao que há. As coisas que não fazemos e deixamos de fazer para não nos lembrarmos do que alguns fizeram e não deviam ter feito!
Não que daí venha maior mal ao mundo do que o que viria do simples reconhecimento da gravidade de alguns factos. Entre um modelo, desenhado para responder a problemas unicamente discursivos, e outro, pensado para contrariar o discurso vigente, pode nem haver diferença nenhuma. Contudo, começa a ser grave não reconhecer que enfermamos como que de uma anomalia genética para a inconsequência. Ainda mais grave, será fingir que basta que nos embrulhemos em contradições, como se envergássemos seda chinesa ou arminho, para que o que ontem aconteceu deixe de ter a importância que teve e passe a ter outra qualquer ou, pior ainda, nenhuma. Por tudo isto, não podemos, mesmo em nome de um qualquer bem maior, continuar a atropelar princípios e aceitar que os que um dia revelaram maior preocupação com o seu umbigo do que com a causa pública se auto intitulem outra vez “os salvadores da pátria”. Enquanto deixarmos passar estas e outras nunca teremos legitimidade para, por exemplo, perguntar o que é que aconteceu aos que ontem se afastaram de determinado partido, em rutura com a maioria dos seus correligionários, para hoje voltarem a ser, reciprocamente, os seus protagonistas. Depois, mais caricato do que surpreendente, damos nesta esquisitice de termos dois candidatos à autarquia da Guarda a serem determinados pelos órgãos superiores dos respetivos partidos. Ambos contrariam as primeiras opções locais e, se bem que cada um, à laia de justificação, traga a sua superstar no regaço, não deixam de ser impostos de cima para baixo. Caso tão mais grave quanto mais nos faz sentir que somos o refugo a que ninguém quer recorrer, porque, bem vistas as coisas, não deixa de nos passar um atestado de menoridade quem julga ter de escolher por nós. Claro que, por outro lado, também podemos recuperar a velha lógica endogâmica de os aparelhos partidários cercearem qualquer possibilidade de renovação para justificar tanta tropelia, mas isso só acentuaria o facto de não sermos capazes de ser mais exigentes e, sobretudo, mais consequentes.
Refugo e superstars
«Entre um modelo, desenhado para responder a problemas unicamente discursivos, e outro, pensado para contrariar o discurso vigente, pode nem haver diferença nenhuma»