Publicado em 1946, “Glória em Sangue”, de Nuno de Montemor (1881-1964), reconstitui a vida e o ambiente do Regimento de Infantaria nº 12, nos anos 1901 e 1902, no quartel da Guarda, sito no antigo convento de S. Francisco. O período ficou marcado por um jogo de sombras entre republicanos e monárquicos no seio do Exército e, sobretudo, entre poder civil e poder militar.
Estruturada em 14 capítulos, a narrativa centra-se na figura do capitão Fernando Vidal, um brioso oficial para quem o verdadeiro soldado é aquele que vai à África em demanda de gloriosas lutas. Perpassando nela um sentimentalismo piegas e, por vezes, uma teatralidade exagerada, a diegese conforma uma sucessão de tensões/ distensões nas relações interpessoais entre as personagens, motivadas por questões de honra, de disciplina, de suspeitas, de camaradagem e de política. Culmina com a cena da despedida dos soldados às respetivas famílias, antes de partirem para África, numa expedição de três anos, entre 1902 e 1905, e relatada brevemente no último capítulo do volume de 393 páginas.
Plantado num cenário histórico, mas pintado com laivos de simbolismo, este romance de costumes militares – que o autor conhece bem por ter aí exercido durante anos o cargo de capelão –, mergulha o leitor numa determinada franja da sociedade portuguesa de inícios do século XX, tocada pela fama que Mouzinho de Albuquerque granjeou quando rebateu, em Moçambique, não só os guerreiros de Gungunhana como a jogada dos ingleses na disputa pelos sertões da África austral.
O suicídio do “herói” das ditas campanhas de pacificação de Moçambique ocorrido em 1902 vem espoletar sentimentos de indignação nos militares africanistas. Num quadro nebuloso de indefinição de prioridades políticas, o país parece virar as costas a esses valentes portugueses, desviando-se das causas sagradas, inspiradoras das virtudes guerreiras.
Vindo a público no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, o romance ensaia uma remodelação imaginária de África e do mundo a favor de Portugal. Em linha com a política do colonialismo do Estado Novo, a obra não só frisa a necessidade de ocupar as colónias, como constrói a figura do herói português, santifica o soldado colonial, participa do culto de Mouzinho, estabelecendo-se sub-repticiamente um paralelismo com o culto à personalidade de Salazar.
A par dessa idealização enraizada no Integralismo lusitano, Montemor representa aquela Guarda castrense, com o seu quartel, cuja vida era ritmada por toques de clarim, paradas, deslocações a cavalo, relatórios, humor patusco, frio e humidade, caserna com condições baixas de salubridade, notícias adiantadas pelo «jornal da caserna», idas à carreira de tiro, no forte velho do marquês de Alorna, a 3 km da cidade. Apesar de mal remunerado, o soldado não se queixa. No claustro do aquartelamento, sargentos jogam à sueca, a cigarros. Às escondidas, um alferes mata a fome a uma criança de rua. Filhas de oficiais, honradíssimas, circulam pela caserna e frequentam o colégio das Doroteias onde aprendem a língua alemã e a tocar piano. Fora das horas de serviço, oficiais podiam dirigir-se ao Clube (Egitaniense) para jogar bilhar, bridge ou solo. Na urbe, estudantes e polícias não se davam bem. No Terreiro dos Ovos ficava a Hospedaria da Felicidade e o Governo Civil já se adaptara ao edifício erguido para ser uma fábrica de sedas.
Próximo de doutrinas que poderíamos qualificar hoje de imperialismo como ideal de ordem política, antiparlamentarismo, modelo de liderança paternalista, fé patriótica fundada na fé religiosa, este livro de Montemor encontrará dificilmente eco no espírito do leitor criado num regime democrático, estável e responsável. Todavia, continuamos convictos de que poder falar sobre as motivações dessa visão política subjacente ao romance em apreço é mais rendoso, do ponto de vista da tarefa intelectual de perceber a causa das coisas, do que cancelá-lo, fazer de conta que não existe ou existiu, por conveniência dos adeptos do politicamente correto.
No final, morre o capitão e nasce uma lenda
“Em linha com a política do colonialismo do Estado Novo, a obra não só frisa a necessidade de ocupar as colónias, como constrói a figura do herói português, santifica o soldado colonial, participa do culto de Mouzinho, estabelecendo-se sub-repticiamente um paralelismo com o culto à personalidade de Salazar.”