Luis*

“O populismo sempre existiu na nossa democracia. Só que limitado ao poder local e regional. Em ambiente controlado, no interior dos partidos do arco governativo e cuja propagação era estancado pelo próprio funcionamento do sistema partidário. “

1. Numa estratégia minimalista, e em desespero de causa, a esquerda acena com o “façizmo”, o populismo e o extremismo do Chega. As simplificações (neste caso, o reductio ad hitlerum) sempre fizeram mal à fluência das ideias. Infelizmente, são recorrentes. O objectivo é assustar o povo “inculto” e “oprimido”, com um catálogo de malfeitorias que os íncubos e súcubos da direita irão praticar, para castigar o país e os “direitos”, caso cheguem ao poder. No fundo, uma variante do tele-evangelismo, acenando com os suplícios do inferno, caso a virtude revolucionária não triunfe entre os crentes. Ou dos infames vendedores de indulgências. Não interessa que haja corrupção, desde que não dê nas vistas, pois isso beneficia os «tenebrosos populistas da extrema direita». Claro que os educadores do povo – como Abrunhosa, Pacheco Pereira, a Dra. Ana Gomes, o prof. Rosas e os insignes subscritores dos abaixo assinados avisando a populaça para os perigos do “neo liberalismo” e do “fáçizmo” – já estão num plano superior de ilustração e entendimento. São os vigias no cesto da gávea, perscrutando o horizonte em busca de ciclópicos monstros marinhos. Representam o protótipo do “intelectual regressivo”, como bem escreveu Paulo Tunhas. Alucinados com utopias miríficas, mas regredindo, em matéria de pensamento, ao grau zero. Muito se falou sobre as infelizes declarações de Guterres acerca dos crimes cometidos pelo Hamas sobre civis no dia 7 de Outubro: não apareceram do nada. Mas seguindo esta linha de raciocínio, o Chega também não nasceu do nada. Os oligarcas andam preocupados com o seu crescimento. Mas foram eles que geraram o Chega. Que o embalaram. Que lhe forneceram uma cadeia alimentar de largo espectro. O amparo ideológico da esquerda não leninista continua a ser Rousseau e o racionalismo iluminista, na sua versão jacobina. Ainda assim, não descarta, como instrumento de estratégia política, o recurso ao mais primário dos sentimentos: o medo. O medo do papão que aí vem, se não fizermos a escolha certa. Tratando-nos como néscios infantilizados. No entanto, o expediente não deixa de ser eficaz, até um certo ponto. Na prática, o medo é um dos temas constantes da humanidade. Que força destinos colectivos e individuais. É o medo da fome, da extinção, da catástrofe, do sofrimento, da morte, do abandono, da doença. Se assim é, porque não acrescentar ao cardápio o medo do “fáçizmo”? Note-se, isto passa-se num país da UE, integrado na NATO e sem a dimensão, a retórica e a violência que os populismos atingiram noutras paragens. Ainda assim, os educadores do povo – em modo protecção civil – subiram o tom dos avisos à população sobre a catástrofe que se irá abater sobre o país, se houver alternância do poder. Uma ocorrência impossível em estados de direito democráticos, como sabemos! Ou seja, o nível de alerta passou de laranja a vermelho. Esta balcanização e esta histeria são impensáveis na grande maioria dos países europeus. Onde, em seu próprio benefício, já ninguém acena com fantasmas, mas com factos e programas. Este cavar de trincheiras tem efeitos curiosos. A esquerda orgânica actua como se estivéssemos na guerra civil espanhola e fosse necessário cerrar fileiras contra a ameaça fascista. O nós ou eles. O nós contra eles. Mas quem são “nós” e “eles”? A resposta não é fácil, nem linear. Conheço razoavelmente a breve história da república espanhola, e o conflito armado que se seguiu à insurreição dos falangistas. Li apaixonadamente “A Esperança”, de Malraux. Ou a “Homenagem à Catalunha”, de Orwell. Sei perfeitamente de que lado estaria, na frente do Ebro, ou em Toledo: lutando pela jovem República, nas fileiras anarquistas, ou do POUM. Não por acaso, esta foi a última guerra com forte componente ideológica da História. Aqui, a opção era clara. Era o “nós”, ou “eles”, sem nuances, ou hesitações. Ou a democracia, ainda que imperfeita e com excessos, ou uma ditadura atávica e brutal. Ao contrário, a alternativa imposta pela nossa esquerda actual é entre o imobilismo e a libertação da sociedade das garras do Estado. Por outro lado, o kommentariado afecto à situação não cessa de propagar a ideia de que a acção da justiça contra os políticos só fortalece os populismos. Esta linha de raciocínio é semelhante à que transforma os vilões em vítimas e vice-versa. Os germes do populismo estão latentes nas profundezas dos regimes democráticos. A sua activação só depende de um factor: a saúde do sistema. Quanto mais debilitada, maior o incentivo ao crescimento do populismo. A ideia está longe de ser original, mas devia ser um mantra repetido pelos actores políticos. Mas é preciso ir mais longe. O populismo sempre existiu na nossa democracia. Só que limitado ao poder local e regional. Em ambiente controlado, no interior dos partidos do arco governativo e cuja propagação era estancado pelo próprio funcionamento do sistema partidário. Com o aparecimento do Chega, as regras mudaram. O partido de André Ventura plantou-se como um outsider, cujo enorme potencial de crescimento está a ser dado de borla pelo sistema. Ou seja, em resumo, na Madeira, em Oeiras, em Felgueiras, em Marco de Canaveses, em Matosinhos, em tantos outros municípios, o populismo foi a causa da disfunção do sistema. Com o Chega, a cadeia alimentar inverteu-se.

2. A solidão tem compartimentos estanques, com alçapões ocultos, estátuas de sal pelas esquinas, palavras deixadas ao abandono e outras que iluminam o caminho, vozes que afinal são ecos, portas que afinal são paredes, sons de piano escapando pelas frestas, gatos que são oráculos, rostos que partem e outros que chegam, o sol que dá vida e nada pergunta, o pão, a cera derretida, o arado escrevendo a terra. A música onde somos tocados.

* No calendário vegetal celta, significa “Sorveira”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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