Na mitologia, o famoso Ulisses, celebrizado pelo cavalo de Troia, diz a Calipso: uma vida de mortal bem-sucedida é preferível a uma vida de imortal falhada.
Uma primeira pergunta antes de avançar é a de quantos de nós queremos ser imortais ou eternos?
Hoje deposita-se uma enorme esperança na biotecnologia para alcançar a imortalidade, esse velho desejo da humanidade em busca da eternidade. Zoltan Istvan tem-se apresentado como defensor do trans-humanismo, a que chama um movimento social composto por todos os que estão interessados em fazer a Humanidade avançar através da tecnologia e da ciência. Em 2016 foi candidato à presidência dos EUA, sabendo de antemão que não tinha hipóteses, mas o objetivo era espalhar o seu ideal, para tal transformou um autocarro num enorme caixão e percorreu a América promovendo o debate e angariando fundos, num autêntico “croudfounding” de porta a porta.
Há mais de um ano o jornal “Público” publicou uma entrevista a Istvan e deu-lhe o título de “As promessas do motorista do Autocarro da Imortalidade”. A profundidade do pensamento subjacente assusta, até porque hoje já há um futuro diluído no presente, ou seja, o homem deseja e faz acontecer. O que era há meia dúzia de anos ficção científica é hoje uma realidade. Istvan afirma ainda que «após o problema da morte resolvido, o rejuvenescimento cultural, espiritual e social virá do nosso envolvimento com a tecnologia, à medida que as mentes se fundirem com ela». Convencido?
É um exercício interessante refletir sobre as ideias de Istvan e de repente estamos a discutir a viabilidade de cada uma delas, numa qualquer esplanada de uma forma descontraída e sem abordar sequer a questão demográfica. Mas o debate vai para além da afirmação de Ulisses a Calipso, não bastando querer, é inevitável discutir como teremos acesso à imortalidade. Qual o preço e quais os eleitos. A desigualdade económica encarregar-se-á de dar a resposta, beneficiando obviamente os muito ricos, que passam a ter acesso a tecnologia transformadora da própria essência humana. No grupo ainda restrito de defensores dos ideais trans-humanistas encontramos os magnatas de Silicon Valley e outros se juntarão rapidamente. A questão da desigualdade no acesso à imortalidade levará no limite a convulsões sociais e a desequilíbrios crescentes na já invertida e perturbada pirâmide demográfica.
O próprio Zoltan Istvan, defendendo teorias libertárias e socialmente justas, refere: «Uma coisa é não ter bons transportes públicos, outra coisa é as pessoas pobres não terem um coração biónico quando os ricos o conseguem ter e por causa disso vivem mais tempo».
Habituados à democratização da tecnologia principalmente na área da saúde, será, do ponto de vista ético, complexo fazer a escolha entre a vida e a morte com base na capacidade económica. Hoje é possível aumentar os anos de vida recorrendo à tecnologia de ponta, que, embora ainda cara, vê reduzido o preço com a massificação e democratização do seu uso. Mas há muito mais do que isso, porque a supertecnologia criou um novo tipo de super-ricos, que serão, pelo menos numa fase inicial, os candidatos perfeitos para a sua utilização, surgindo assim um novo tipo de humanos ou biónicos, que até há pouco faziam parte do nosso imaginário mas que já faz parte de uma realidade, só acessível a minorias, como é o caso da sequenciação ultrarrápida de DNA, a engenharia de tecidos, reprogramação celular ou a edição de genes, tudo em nome da reparação dos erros celulares vulgarmente conhecidos como doença.
A terapêutica imunológica recorrendo a linfócitos do próprio doente, testados para avaliar quais deles reconhecem as mutações genéticas de um tumor, e posteriormente multiplicam-se os “vencedores” e injetam-se em conjunto com um anticorpo monoclonal que potencia a ação dos linfócitos e que, ligando-se a um recetor de morte celular, resultará na desejada destruição das células anormais. Se há 30 anos era impensável decifrar o nosso código genético, o tempo encarregou-se de desmentir e em 2003, treze anos volvidos e 830 milhões gastos, o projeto do genoma humano viu a luz do dia. Hoje a análise molecular demora apenas um dia e custa 830 euros.
Em breve haverá a possibilidade de prever com exatidão o risco de contrair determinada doença, ou pesquisar o medicamento não só adequado à patologia, mas também o adequado ao DNA do doente. Da mesma forma a manipulação genética poderá corrigir erros em embriões.
A medicina de precisão é hoje tudo isto e tudo o mais que se possa imaginar.
A cirurgia minimamente invasiva e a robótica apresentam um desenvolvimento ligado à evolução eletrónica e digital, a que alguns se referem como a quarta revolução industrial. A robótica, a utilização do 3D e a qualidade da imagem com resolução 4K, fazem parte do presente, ainda com preços elevados e baixa disponibilidade, mas na qual se projetam as maiores esperanças.
Mas para falarmos de longevidade ou imortalidade falamos em transplante de órgãos, onde o sucesso está mais associado à qualidade e quantidade dos dadores e da evolução dos medicamentos e menos ligada à evolução das técnicas cirúrgicas. Mas na imortalidade haverá dadores? Adivinha-se que alguns órgãos artificiais poderão trazer mais tempo à vida, mas até agora só o coração tem tido desenvolvimentos adequados. Não se adivinham fígados, pâncreas, pulmões ou cérebros artificiais. Então recorremos à produção de órgãos a partir da cultura de células. O pâncreas artificial é hoje uma realidade e, por certo, outros surgirão.
Voltando à conversa de Ulisses com Calipso e à pergunta que fiz, quantos de nós queremos ser imortais ou eternos? Bom, já percebemos que para além dessa virá a outra, quantos de nós conseguirão pagar a imortalidade? Até onde se atreverá o Estado social?
E o que terá pensado Calipso da afirmação de Ulisses?
Nota: Dedicado ao Filipe Vaz e a outros lutadores