Hoje, eu Guarda, escrevo a ti, Futuro.
Espero encontrar-te num momento de Paz e Prosperidade, valores que atualmente, no momento em que escrevo, não abundam. Lembro-me que também, há 824 anos te escrevi uma carta semelhante, que medo tinha nesse dia, tão insegura, tão jovem, tão ambiciosa que eu era. Em mim moravam homens aguerridos, fortes e destemidos que me tornaram na “Mais Alta”; se soubessem como hoje sou…
Hoje, escrevo-te porque tenho necessidade de o fazer, para expiar as minhas culpas, as minhas fraquezas, os meus medos. Sempre aceitei todos aqueles que para cá quisessem vir (imposição do foral de El-rei D. Sancho I). Às vezes, dá-me vontade de falar desde o centro do inverno, desta cidade mortiça e «negra de velhice», como diria Vergílio Ferreira.
Já fui importante na defesa do país, mas vozes da populaça, ecos dos reis, sonhos vãos, sob a incredulidade do homem, tornaram-me pequena. Todas as ideias parecem ter a idade de séculos. Gosto de me conhecer durante a noite, é aí que a Guarda, que guardo em mim, se revela nas ruas espectrais, ermas, vazias de almas, que escondem um mundo de sonhos desaparecidos.
Lembro-me de há muitos anos haver música nas ruas, o milagre da vida surgia em cada beco, numa frase musical, num verso perdido de um estudante; hoje, desconheço a razão da cidade dentro da cidade, ela não confraterniza mais comigo.
A vida, em mim, tem uma rude nudez, o dom da alegria esvaiu-se e expulsou a ilusão dos homens. Dir-me-ás, que hei de voltar a ser «A Mais Alta». Um dia, quem sabe?
Já fui a cidade saúde, hoje vejo-os passar, desorientados, vagueando pelas ruas, abandonados, escondendo-se da existência e absortos numa invasão de silêncio. Já fui a cidade dos 5 F’s: Forte, Farta, Fria, Fiel e Formosa. Ainda me sobra algum? Talvez. Observo certos destemidos que persistem, mas não insistem e desaparecem numa solidão final. Já fui palco de exposições, onde vagamente me reconheço, no centro do saber. É como a chuva, que em bátegas, tudo arrasta e leva, varrendo as lembranças felizes da minha memória. Num sonho longe, imaginado, recrio-me numa memória antiga, que perdura neste meu mundo desabitado. Já fui mãe de mulheres rebeldes, insubmissas, que lutaram por ideais e construíram sonhos, essa parte mais inconformada de cada um de nós, da nossa condição. Hoje, algumas tentam conquistar uma rara grandeza, com muita humildade. E aí, Futuro, elas encontram respostas para as suas ambições e interrogações? Já fui, também, mãe do Anjo da Guarda, que tanto significado tem para a vida, que se tornou na evidência final num horizonte longínquo e assumiu o sangue que nos reinventa a vida e acalenta a alma. Já fui a musa de escritores, que me imortalizaram, que me provaram a linfa, que me amaram, que me cantaram.
Futuro, não sei se tenho futuro. Esta realidade imediata, incerta, conforta-me, talvez pela dúvida ou pela irrealidade, não sei. Mas, sabes, Futuro, tenho necessidade de te escrever, para um longe imaginado, por onde os ventos e as massas de névoa passam; tenho necessidade de falar da minha grandeza passada. Como serei aí no futuro? Serei uma terra abandonada, um eco no espaço sideral, sem voz?
Provavelmente, quando leres esta carta, muita coisa já mudou, nem sei se ainda poderei celebrar outros 824 anos. Talvez seja, só, uma memória vã, uma recordação remota que se tornou lenda, numa vertigem da existência. Preciso de me reinventar, ambicionar a um futuro sem limites temporais, habitada por gente Forte, Fiel e Formosa, que me (re)escreva na música das estrelas; que conte as estórias dos grandes e me torne grande, sem comoções ou medos. Preciso de gente ambiciosa, sem peias, nem interesses. Quero ser, outra vez, a cidade “Mais Alta”.
Despeço-me, Futuro, desejando-te sucessos plenos de alegria.
* Professora do ensino secundário