Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal da Guarda,
Talvez não seja do conhecimento geral, mas os arruamentos do Centro Histórico, tal como hoje os apropriamos, resultaram de um projeto que data de 2008. Pensado e materializado como um todo coerente, visava acima de tudo uniformizar a imagem urbana do centro histórico. Definia, muito resumidamente, uma uniforme e discreta pavimentação para os arruamentos, e uma marcante singularidade em três momentos – Judiaria, Porta D’El Rei e Torre dos Ferreiros.
Pretendia-se aqui uma marcação diferenciadora, dai a solução pela manutenção da calçada primitiva, como que enfatizando os correspondentes espaços da Judiaria e das portas de acesso ao espaço intramuralhas. Mais desconfortável, sim, mas em prol do respeito pela memória do sítio. Vencida a inércia desse momento, como que conquistada a praça-forte, somos “premiados” por uma matriz mais comodamente transitável que invade as restantes artérias do espaço intramuralhas.
Nesse sentido, ou perseguindo esse objetivo, deveria, quando justificável, ser corrigida a pavimentação na Porta da Erva ou Porta da Estrela e adotada a mesma solução preconizada para os outros dois acessos ao espaço intramuralhas ainda existentes.
Ficou ainda em aberto, requerendo-se para aqui uma mais profunda reflexão, o tratamento a dar à Rua do Comércio e Rua 31 de Janeiro, esta última no tramo entre o nº 30 (sensivelmente onde a muralha medieval cruza a rua) e a confluência com a Rua General Póvoas, que por se tratarem de duas artérias rasgadas num tempo distante da consolidação da malha urbana medieval, nos anos 40 do século XIX, pelas intrínsecas motivações – a abertura de uma artéria que permitisse uma mais direta e desafogada ligação entre Celorico da Beira e a Covilhã – serão por isso igualmente merecedoras de um certo destaque.
Numa ótica de marcação do perímetro muralhado da cidade medieval com consequente corporização de todo o conceito de revitalização do mesmo e por se requerer também aqui uma mais profunda reflexão, restou por último o tratamento a dar a toda a área entre o Largo Dr. João Soares e a Torre de Menagem, onde o troço da muralha medieval fora demolida, no início do século XIX (1835), bem como a Porta da Covilhã ou Porta Nova e a Torre do Mirante das Freiras, demolidas estas em finais do mesmo século (1888).
Foram aqueles alguns dos princípios que presidiram a todo o processo de revitalização das artérias do Centro Histórico que, ao cabo de uma década, pela intervenção presentemente em curso, são simplesmente apagadas, com uma ligeireza tão atroz que arrepia – levantamos a calçada, aplicamos um lajeado de granito só porque é mais cómodo…
Obviamente questiono a solução agora adotada, que mais não seja porque dilacera uma ideia global então preconizada para o Centro Histórico. Contudo, despeito igualmente, a falta de respeito e consideração pelo trabalho à data produzido e pelos técnicos envolvidos, aqueles que projetaram, os que apreciaram e aprovaram e até mesmo os decisores. Lembro aqui que aquele projeto de 2008 mereceu especial atenção e aprovação pela Direção Regional de Cultura do Centro (IGESPAR à altura), como aliás não podia deixar de ser, pelo que muita me estranha que agora se altere tudo aquilo que há altura eram convicções.
E tão mais grave é a desconsideração que a dita acontece em dois tempos. Aquando da elaboração do projeto, sem que se tenha verificado a devida atenção em perceber os antecedentes e aceitar os constrangimentos. E já numa segunda fase, após inconsequente alerta endereçado no âmbito das sugestões públicas aos Projetos do Largo da Misericórdia e Torre dos Ferreiros. Se por lapso dos projetistas, não foi percebida aquela ideia global para o Centro Histórico, já o segundo momento não deixa qualquer réstia de dúvidas quanto ao respeito, ou falta deste, pelo trabalho dos outros.
Nada! Nem o mais pequeno sinal! Como se tudo aquilo que foi produzido não significasse nada. E até mesmo os seus autores indignos de ver reconhecida a mais-valia do projeto e consequente materialização do mesmo. Projeto esse, aliás, digo-o com todo o orgulho, merecedor do maior consenso e aceitação, que tanto assim o foi que passou despercebido como projeto. Dele não se extrai o mais íntimo ego dos projetistas mas antes sim as melhores soluções técnicas com respeito pela memória do sítio e das gentes.
Mais. Foram poucos os momentos em que por aqui se desenhou cidade. Lembro, no âmbito do Programa Polis, a elaboração de um plano tão vasto territorialmente que previa o preenchimento da malha urbana entre a cidade alta e a estação, o qual só pecou mesmo pela sua incompleta execução.
O objetivo, à data do nosso projeto, foi o de, num pedaço de cidade balizado pelo espaço intramuralhas, gravar uma identidade territorial singular que permitisse precisamente diferenciar este da restante cidade e assim deixar vincada a linha de fronteira entre ambas.
Ao invés a presente intervenção ignora a cidade como um todo e pretende somente resolver um ponto singular desta, recorrendo para o efeito a uma solução desde há muito amplamente questionável e que apresenta a melhoria das acessibilidades como único argumento digno de reflecção.
Resta-me por último expressar que, qualquer que seja a obra de construção civil, seja esta privada ou pública, até mesmo com especial relevância para estas últimas, deve ter como premissa a atribuição de qualidades funcionais e construtivas reveladoras de uma muito mais vasta longevidade.
Com a obra de 2009 foi levantada a calçada existente por forma a permitir a renovação das infraestruturas públicas de abastecimento de água, esgotos e pluviais, inclusive com a criação de uma rede de gás. Posteriormente foi construída nova calçada com pedras selecionadas dos restantes arruamentos do Centro Histórico.
Assim sendo, também por aqui, não se vislumbra a pertinência das presentes obras. Aqui não era necessário intervir, como de resto assim o entendemos para a Porta da Erva, por decorrido um espaço temporal muito curto desde a intervenção que lhe conferiu a atual aparência. Uma obra pública tem que obrigatoriamente possuir uma longevidade muito mais extensa do que esta década que passou!
Leio-me como um arquiteto distanciado de um qualquer “star system”, bem mais empenhado, no recato do meu espaço, na incessante procura das melhores soluções técnicas para cada projeto. Contudo, não posso agora deixar de me insurgir por todo o sucedido, ao ponto de proferir estas palavras de revolta numa voraz esperança de ver ainda corrigida desconcertante insensatez. Não me coibo ainda de criticar a solução agora implementada, na mesma proporção em que os seus autores ignoraram e até mesmo desprezaram o trabalho à data produzido.
Por não ter recebido qualquer “feedback” quando a 4 de julho de 2018 V/ enderecei as minhas sugestões no seguimento da consulta pública sobre os projetos de Requalificação do Largo da Misericórdia e Requalificação da Praceta Envolvente à Torre dos Ferreiros, segue agora a presente carta aberta, na espectativa de agora obter a V/ atenção.
Com os melhores cumprimentos,
Celestino Pissarra, arquiteto, Guarda