Alguém muito próximo de Vergílio Ferreira ganhou coragem e interpelou o grande escritor de Melo da razão porque nas suas obras falava de pessoas da terra, ainda vivas e facilmente identificáveis, tal a minúcia da descrição.
O autor de “Aparição” respondeu prontamente: «Se já tenho essas para quê inventar outras?». Vem esta evocação a propósito da criação das Comunidades Intermunicipais (CIM). Se já tínhamos os distritos há quase dois séculos para que serviu inventar essa nova entidade?
Para além de uma pura manobra político-partidária, prevendo uma consequente alteração dos círculos eleitorais, houve uma certa vaidade pessoal do autor dessa pseudorreforma do território que quis deixar o seu nome na história. O certo é que, ao fim e ao cabo, os municípios pouco aproveitaram.
Não deixa de ser curioso que quem deu suporte parlamentar à reforma Relvas e sempre tão preocupados com as gorduras do Estado, pouco se importa com o despesismo que se foi agravando em muitas dessas comunidades. Sendo meras associações de municípios, era previsível que o seu funcionamento obedecesse mais à logica dos interesses dos concelhos que das regiões.
Quinze bons autarcas, numa CIM como a das Beiras e Serra da Estrela, na hora de repartir o bolo, ganha quem maior bocado alcançar. Quem parte e reparte e não fica com a maior parte ou é burro ou não tem arte. É o nosso povo que nos ensina.
O objetivo da CIM não é a coesão territorial, mas antes o máximo de investimento concelho a concelho. Como é impossível agradar a todos, porque cada autarca aponta o seu município sempre como prioritário, todos puxam “a brasa à sua sardinha”. Lá se vai a unidade regional.
Por isso, já ninguém se espanta ouvir o presidente da Câmara da Covilhã considerar as obras no IC6, que serve Seia e Gouveia, como desnecessárias, apesar de pertencerem à mesma CIM. Dos investimentos nacionais que afetam os territórios então nem se fala… Fica cada concelho por si.
Tomei maior consciência disso numa recente visita às obras da linha da Beira Alta/Corredor Internacional Norte, na freguesia de Baraçal, concelho de Celorico da Beira. A revolta das populações e do presidente da Junta é mais que justificada. A política do facto consumado, que impõe a vontade das grandes empresas públicas e privadas, verdadeiros Estados dentro do Estado, possibilita o acesso aos terrenos expropriados sem que tivesse
havido alguma vez o contacto pessoal entre os proprietários e a empresa expropriante.
Imaginem o que será um comboio com 750 metros de comprimento, com milhares de toneladas de mercadorias, a deslocar-se a uma velocidade de 150 km/hora a passar a poucos metros de habitações ali estabelecidas há décadas, senão há séculos? Só de imaginar mete medo.
As passagens superiores como serão, em aterro ou sobre pilares? E os restabelecimentos de caminhos e outras vias? Terão de ficar a muitas centenas de metros das habitações? Não será lógico que estas populações que ainda resistem nos territórios do interior devam ver compensadas prejuízos vários, até na qualidade de vida?
Este já não é o comboio dos finais do século XIX e de todo o século XX, que impulsionou o progresso das regiões. Nesse tempo, o comboio marcava o ritmo e servia as pessoas. Além das estações, havia ainda apeadeiros perdidos na ruralidade da paisagem. O objetivo da via férrea era verdadeiramente o serviço público. A atual ferrovia é outra coisa, mais empresarial, obedecendo a lógicas de mercado. O transporte de passageiros deixou de ser prioritário; às comunidades resta apenas ficar a ver passar os comboios.
Era aqui que o papel de uma comunidade regional fazia todo o sentido na defesa dos interesses de todos. A lógica de cada um por si devia ser o passado. Pura ilusão! Que ingenuidade a nossa…
Deputado do PS na Assembleia da República eleito pelo círculo da Guarda