A ideia de “Centro de Saúde”, enquanto trave mestra de um “edifício” – Serviço Nacional de Saúde de qualidade – tem vindo a definhar. Formalmente morreu a 31-12-2023.
Já poucos nos lembramos que o “centro de saúde” foi sonhado como entidade organizacional de proximidade que integrava e coordenava recursos e competências, necessárias a esse acompanhamento e apoio. Sabemos todos que, por vezes, pela natureza da situação, porque específica e mais complexa, e também menos frequente, temos que alterar ou mesmo suspender esse dia a dia na comunidade em favor de um plano de cuidados de saúde, capaz de responder em tempo útil [tempo de diagnóstico, terapêutica e assistencial] recorrendo a hospitais. E cada vez mais, dado o natural envelhecimento e a consequente pluripatologia, a cuidados continuados.
Esta é a lógica organizativa dos serviços de saúde. Não podemos/devemos iniciar o nosso contacto com os serviços de saúde, em mais de 40% das vezes, pelo serviço de Urgência. Não podemos iniciar a casa pelo telhado, diria o povo e o bom senso.
O que deve ser feito teoricamente, como sempre em Portugal, chegou a tempo. No início da década de 70 do século passado, três pioneiros: Baltazar Rebelo de Sousa (político), Gonçalves Ferreira (estudioso) e Arnaldo Sampaio (empreendedor e inovador) deram o tiro de partida. Integração (na lei!) dos serviços da Direção-Geral de Saúde (preventivos) com os cuidados (curativos) dos postos médicos das Caixas de Previdência. «Como recordarás, na saúde, cumprir o que a lei institui tem sido frequentemente difícil» – C. Sakellarides, 2023.
Muito foi feito em direção ao conceito Centro de Saúde: conhecer a comunidade, ouvi-la e falar com ela (não com computadores!), estudar as determinantes de saúde, integrar a proteção e promoção da saúde na cabeça dos profissionais e da população, trabalho em equipa e apreço pelo trabalho de todos e aprendizagem continua. «Não uma edificação habitada por profissionais à espera dos seus utentes» – C. Sakellarides, 2023.
Sabíamos de cor os ensinamentos dos mestres. João dos Santos, pioneiro da pedopsiquiatria, falava do desenvolvimento da criança no contexto da sua família, escola e bairro. Dizia-nos que todos temos uma face (o que somos) e uma máscara (o que aparentamos ser) e todos, no fundo, cremos ser como a nossa máscara.
Por isso, é no espaço entre a face e a máscara que as intervenções efetivas, o que interessa, têm que acontecer. Estas intervenções (é claro como água!) são impossíveis em contactos cronometrados de 15 minutos.
O “Centro de Saúde” era o tempo e o modo. Manuel Sá Marques, diabetologista, “médico do bairro”, como se intitulava, um dos maiores humildes/sábios que conheci, tornava óbvio que nas doenças de evolução prolongada, como a diabetes [hoje, cada vez há mais e cada vez são mais longas], é necessário criar condições para acompanhar (noção diferente de vigiar) o percurso das pessoas, capacitá-las a decidir sobre a sua doença, na sua comunidade, evitando prejuízos no seu projeto de vida num ambiente social e cultural propício.
Também entre nós, muitos, médicos de família, médicos de saúde pública, enfermeiros, técnicos de higiene e saúde ambiental e outros técnicos, bem como administrativos constituíam a “família” do Centro de Saúde. O Centro de Saúde estava lá em cada concelho. Todos os concelhos.
Estava lá e ia lá. À creche, à escola (Maria José Cardoso Ferreira passou a vida nisto e com que resultados e ganhos em saúde!), às instituições de crianças inadaptadas, dos mais velhos e menos protegidos, pescando à linha os “deserdados da saúde e da vida” (Cardoso Ferreira fez isto toda a vida), aos pastores e queijeiras da serra…
Indo também na saúde mental. Lembremos, aqui e agora, que a Guarda foi pioneira no âmbito da psiquiatria comunitária. Ir! Não ficar à espera!
Militantemente, desafiando os limites dos nossos conhecimentos sobre como intervir com efetividade numa comunidade, digerindo insucessos e incompreensões mas persistindo com os afagos da comunidade. O envolvimento, o fazer com, em detrimento do fazer para, era a marca de água do tempo.
O sucesso internacional do nosso Plano Nacional de Vacinação, iniciado em 1965, é o carimbo histórico da metodologia. Nas décadas de 80 do século passado «foi-se configurando, com honrosas exceções, o edifício administrativo rígido, passivo, sem autonomia, que deixava à porta, em longas esperas, aqueles que dele precisavam e que constrangia o espaço de realização profissional daqueles que nele trabalhavam» – C.Sakellarides, 2023.
Foi-se caminhando: na segunda metade da década de 90 a criação das “Unidades Funcionais”; a primeira Unidade de Saúde Familiar (Seixal 1996); Regime Remuneratório Experimental (1998); Centros de Responsabilidade Integrada (1999); Instituto da Qualidade em Saúde (1999). Atendimento telefónico, hoje SNS 24, como resposta ao caos na procura, já nesse tempo.
O “Centro de Saúde da 3ª geração” (1999) como hipótese (nunca efetivada plenamente) de criação de Unidades de Saúde Familiar, cuidados de saúde na comunidade, saúde pública e de “outras especialidades”, bem como a possibilidade dos “centros de saúde” se associarem para assegurar serviços de utilização comum.
Acompanha o sonho do “centro de saúde de 3ª geração” um dos documentos mais inovadores da saúde em Portugal: “Saúde um compromisso: uma estratégia de saúde para o virar do séc. (1998-2002)”.
Um sonho lindo que acabou…
O desinvestimento afetivo e económico dos sucessivos governos em relação aos cuidados de saúde primários levou à erosão da ideia e de facto do “centro de saúde”. Poucas unidades funcionais, pouquíssima autonomia e contratualização burocrática.
A avaliação que devia ser quantitativa e qualitativa, avaliando os ganhos em saúde, ficou reduzida ao óbvio para a Administração Pública – quantitativa e de processo, esquecendo a qualidade e os resultados. O Instituto da Qualidade em Saúde foi descontinuado.
O “centro de saúde” de proximidade (desaparecido, diz Sakellarides), agrupado em gigantes. Agrupamentos de centros de saúde, “sem eira nem beira”, a título de exemplo, o do Baixo Mondego inclui 53 unidades funcionais dispersas por nove concelhos. Perde-se a proximidade e enterra-se a ideia de “centro de saúde “ com a sua comunidade. Estamos aqui!
Iniciamos 2024 com a generalização do modelo ULS a todo o país, 39 no total. Ficam fora do modelo ULS apenas os três IPO’s. O modelo ULS, integrador de cuidados – primários, hospitalares e continuados – com a mesma gestão, aparenta coerência teórica. Podíamos/devíamos juntar à coerência teórica a evidência prática, considerando que há várias ULS, há vários anos, em territórios diversos com dimensão diferente, em espaços geográficos distintos, de forma a credibilizar/ sedimentar esta alteração estrutural do SNS.
Onde fica o critério insubstituível de proximidade? Em que local é disponibilizado o atendimento cúmplice? Onde está a sala de espera calorosa e pedagógica? «E que venhas, interessado, até cá, quando preciso de ti, aqui» – C. Sakellarides, 2023.
Como conciliar “tipos de cultura” diferentes? Quando e como, a gestão, a população e os seus representantes (autarcas) vão interiorizar como iguais os cuidados de saúde primários e hospitalares. Quando (no próximo ano ou na próxima década?) é que os órgãos de comunicação social gastarão o mesmo tempo a comentar os cuidados de saúde primários como os hospitalares?
Para quando um modelo de saúde destas ULS alinhado estrategicamente segundo o Plano Local de Saúde, elaborado na comunidade e com a comunidade, em detrimento do modelo centralista?
«Sem um concelho clínico e de saúde, ativo e capaz, meu caro centro de saúde, simplesmente não existes» – C. Sakellarides, 2023.
Por favor, «resistam à tentação de transferir recursos destinados à proteção e promoção da saúde nos cuidados primários para as exigências assistenciais imediatas nos hospitais» – C. Sakellarides, 2023. Centro de Saúde não morras! Nem que voltes com outras roupagens!
* Médico e deputado do movimento independente “Pela Guarda” na Assembleia Municipal da Guarda