A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Deixei de saber de ti. Procurei-te nas redes sociais porque a tua música sempre me fez bem. Há uns dias surgiu uma publicação tua – “dear friends, first of all i`m very happy to post this photo” […]. “

A cidade surge ao fundo. Desfocada como se um granulado tentasse ofuscar a vida que foi. Abres a janela. És ainda criança. Saltas de telhado em telhado como aprendeste com os gatos. Quase não se sente o impacto. Tens nos pés o veludo que teces com a voz. Sempre foste menina dócil. Ainda se nota nesse teu rosto arredondado de ar oriental. Os cabelos negros continuam a balançar quando danças. Um jeito resultante das deambulações pelos telhados.
A árvore nua e a cúpula da igreja hão-de levar-te na memória. Espreitas o rio ao fundo. O cais é um estaleiro pesado e marginal. Por entre as cortinas de renda consegues perceber os cheiros. Mas não te chega. Abres a janela. Um pequeno barco segue em direcção ao oceano. Pelo menos assim pressentes. Se te debruçares o teu olhar ultrapassa barreiras. Tens o dom de ver para lá da opacidade. A água cintila como a das praias do mar Egeu. Mas tu nunca estiveste junto desse mar. Porque o trazes para a canção onde dizes trancar as luzes? A tempestade está a chegar à tua pele. Um dia saberás o que fazer com ela.
Solta-se novamente a imagem granulada da tua infância. Crianças brincam em baloiços ou és tu que continuas a dançar. O jardim é inclinado e traz os telhados agarrados. Quando te libertares de ti serás essa ave sob um céu a preto e branco. Saberás pelo menos para onde vais? Pareces sobrevoar a cidade pois entre ti e o céu há lençóis estendidos. Velas de navios como uma vez lhe chamaste. Ou foi no poema que eu te escrevi?
Projectas a tua sombra sobre esses panos brancos onde por vezes te escondes para navegar. É a roda da vida e tu dentro dela tão silenciosa. Como a noite que um dia cairá do topo do dia. Esse homem a beber às escondidas desconhece que a mulher o observa. Só o gato sentado no parapeito da janela dá sinal. O homem que não gosta de gatos porque também nunca gostou de pessoas porque nunca gostou de si atira uma pedra à vidraça.
Os miúdos fogem rua acima. Só tu continuas a dançar e a cantar. Por detrás desse buraco há a pedra. Entre a pedra e o buraco estás tu. O homem fuma e é visível aquela tatuagem no braço – um cesto com uma rosa gigante. Um navio encobre tudo por detrás de ti. Não o vês. Aves acompanham-no como se num adeus. Algumas casas são demolidas. Continuas a girar como a roda da sorte.
Deixei de saber de ti. Procurei-te nas redes sociais porque a tua música sempre me fez bem. Há uns dias surgiu uma publicação tua – “dear friends, first of all i`m very happy to post this photo” […]. Estás bonita na fotografia com o cabelo a querer crescer. Afinal aquela pedra era contra ti. A casa a demolir eras tu. O navio cerceou tudo ao teu redor.
Agora podes brilhar ao sol. O verão não chegou pela última vez. Posso sempre apertar-te a mão e dizer – irás manter os olhos bem abertos, bem abertos. A roda da sorte também é roda de azar. Conseguiste enganá-la. Volta aos telhados. A noite terminou e os demónios desapareceram. Já ninguém recorda essa parede de nuvens escuras. És a menina com veleiros no olhar.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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