Não se poderá chamar casa. Um espaço quadrangular e amplo com um velho sofá onde a mulher se deita enquanto aguarda ser banhada pela luz. Cabides vazios pendurados mostram o despojamento de que os corpos são capazes. Janelas de quatro vidros em caixilhos brancos já fendidos. Um pavão desenhado na parede quase sombra chinesa. O biombo maioritariamente preto já fora pintado daquele vermelho que apenas Van der Weyden conseguira em a Deposição da Cruz. Algumas lascas de tinta afastam-se pondo a descoberto um mar fechado.
Sempre que dança, o vestido lilás desmaiado, preso com laço atrás do pescoço, deixa as costas nuas. Um gato branco tatuado sobressai na ondulação dos gestos. Ele senta-se num velho banco de pele acastanhada junto da janela aberta. Os joelhos unidos vão sendo sacudidos à medida que a música lhe ventila o peito. Usa calças beijes, bem largas, debaixo de uma enorme camisa branca. A pele de ambos é âmbar brilhante. Quase não se tocam. Os dedos de um são o silêncio do outro. Assim baloiçam como se dançassem e caem no chão mandalas coloridas.
Sob a claraboia ela olha o espelho e a nostalgia adensa o ar. Rodeia o pequeno piano como vento arrastado. Quase permite que os dedos toquem as teclas, mas num gesto calmo levanta as mãos. Uma aura sagrada estabiliza o espaço. O instante é dele. Sempre tivera mãos orgânicas. Os dedos longos sobre as teclas a provocar as cordas e um novo mundo a ser concebido – a terra como disco plano com infinita água acima e abaixo. O céu um firmamento sólido e metálico incrustado de estrelas.
These are the days of our lives1 – canta-lhe.
Riem muito e correm atrás um do outro. Então ela dança sobre o colchão até cair de bruços. Assim o observa melhor. Nenhum deles sabe ao certo porque acima da cama uma gaiola está pendurada. De vez em quando sentam-se lado a lado no longo corredor. Olham-se por dentro. A memória ascende como uma declaração. Já se acharam reféns numa casa de pedra. Era o tempo da inquieta esperança. Dos aluimentos através da pele. Do lume em rotação sob os corpos. Do estonteamento.
Se os observássemos hoje lembraríamos a beleza. Renunciaríamos a esmagar o mundo. Habitamos esse espaço a despenhar-se, a mapear sedimentações na cal da parede. O sussurro da música desliza como fenda sanada. Conhecemos o deslumbramento de os saber presos um no outro e a inteira liberdade de cada um. Entoa em nós o refrão whichever way you choose we are trapped in free1, enquanto se extingue a luz da vela que sempre ardera no parapeito da janela.
1 Benjamin Clementine – Genesis
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia