A Guarda de oitocentos ficcionada em papel: “1882, o Ano do Comboio”

Escrito por Thierry Santos

“(…) a diegese vive não só dos ganchos para agarrar o leitor até à última página como também de cenas passíveis de suscitar nele toda a gama de emoções (…)”

140 anos depois, chega aos escaparates um romance histórico ancorado na inauguração da gare da Guarda. Rui Pissarra, guardense, autor de uma dissertação de mestrado sobre a história dessa infraestrutura, estreia-se na arte do texto romanesco com uma missão bem definida: voltar à Guarda de oitocentos por via dos atrativos da ficção para levar o leitor a familiarizar-se com acontecimentos, lugares e vultos que a marcaram.
A ação desenrola-se entre os anos da guerra civil de 1832-34 e a visita do rei D. Luís I e da sua comitiva à Guarda, em 1882, para inaugurar a linha da Beira Alta. Ao lado dos protagonistas por si criados, nomeadamente Pedro Ruiz, o médico que representa a positiva mudança social e política, o autor-narrador ressuscita entidades que fizeram história, encenando psicologias, ideologias e indumentárias da época, tão dada a convencionalismos como enquadrada no patriarcalismo.
Além de reverberar os grandes debates que influiu a sociedade de então entre absolutistas e liberais, progressistas e regeneradores, monárquicos e republicanos, a narrativa privilegia, em pleno Fontismo, a dinâmica burguesa e a crescente influência do jornalismo, por um lado, e, por outro, a força técnico-científica representada por médicos e engenheiros, em detrimento de uma aristocracia cada vez mais ultrapassada.
Mas não só. Aspetos do temário social e político evidenciados no romance fazem eco da nossa atualidade: a questão do desenvolvimento do país e, em particular, do interior; a opção de investir ou não na ferrovia, a abertura aos mercados internacionais, a dificuldade de combater uma epidemia, o receio do escândalo de adultério numa cidade provinciana, assim como a vida política condicionada por um ambiente de conspiração, com recurso à chantagem e ao uso da imprensa para difamar e criar factos políticos.
Plasmado no subgénero romanesco emergido com a ascensão da burguesia, do romantismo e da urbanização das cidades europeias no séc. XIX, o livro oferece um enredo com peripécias, acasos felizes e suspense. A voz do texto urde uma história de amor à partida improvável entre Pedro Ruiz e Amélia, a filha de um rico dono de terras, faz surgir Vilaça, o arqui-inimigo de Ruiz – sendo este o duplo em negativo do clínico –, e não dispensa a figura do fiel criado de aparência bruta. A isso juntam-se, entre outros elementos, uma filiação problemática devido a sangue azul espanhol, uma clarissa, um governador, o quartel militar, o Rei, uma festa faustosa, uma rocambolesca cena de perseguição, um aprisionamento injusto e um final feliz, como o exige o modelo literário adotado.
Escrita em linguagem acessível (com a particularidade de o discurso direto estar assinalado em itálico), por vezes não isenta de modismos destoantes da época retratada, a diegese vive não só dos ganchos para agarrar o leitor até à última página como também de cenas passíveis de suscitar nele toda a gama de emoções, ora com situações cómicas, tal a saída apressada do pianista inglês John, de madrugada, pela janela do quarto de uma senhora da alta sociedade guardense, ora com situações dramáticas, como a cena da morte do rapaz do asilo, esmagado por uma carroça.
Enveredando por um modo convencional de tratar as histórias e a História, tal narrativa, criada sob o tema da viagem de comboio (como indicam os títulos das cinco partes que compõem a obra), visa apontar para a possibilidade de um mundo melhor. Neste sentido, o romance convida o leitor a refletir sobre a mudança dos tempos e da paisagem urbana guardense, desde o séc. XIX até ao séc. XXI, apresentando-se Rui Pissarra como porta-voz de um imaginário cultural beirão, mas sem paredes à volta.

NR: Thierry Proença dos Santos inicia nesta edição uma colaboração mensal com O INTERIOR. Filho de emigrantes radicados em França e naturais do concelho de Trancoso, a Guarda foi destino visitado, bem cedo, de modo regular. Frequentou o Monteneve, estudou na Afonso de Albuquerque e fez o exame de condução automóvel na cidade mais alta. Tirou um curso superior em Paris e fez carreira de professor universitário no Funchal. As marés da vida trouxeram-no de volta à Guarda, onde desempenha funções no Museu da cidade.

Sobre o autor

Thierry Santos

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