São tantos os dias em que caminhamos por aí. Pensamentos vagueiam como se quisessem encontrar outro caminho. Esses dias, esses dias. Perdidos entre sonhos e planos e caminhos a indagar. Ouvimos The Velvet Underground sentados em esquinas de pedra para não esquecermos os nossos fracassos. Um dia somos capa de revista e acreditamos que, noutro dia ainda mais distante, contracenámos num filme de Fellini. Mas a câmara lenta arrasta-nos por carreiros sombrios. O corpo amedrontado a querer esvoaçar. Como se vivêssemos à vez.
Por baixo das pedras existem herméticas encruzilhadas. Imperfeitas alegrias fossilizadas. Uma realidade onde se avança e se recua. Como se fôssemos seres duplicados. Polos opostos – de um lado a razão e a calma, do outro a imprevisibilidade das emoções. Aluviões circundam a pele. Arquejante é o corpo obscuro perpetuado no olhar. Sente-se uma catástrofe a atravessar o poema. Cada verso é inverso a si mesmo. E o peso do mundo é um relâmpago na ponta dos dedos.
Descobrimo-nos perdidos na música que criámos. Sobram os ruídos. Já nada renasce em Fevereiro e o frio entra pela porta da rua. Somos alheios à narrativa. Ângulos inesperados edificam um quarto onde nos fecham. Uma força poderosa afasta-nos de nós e ensurdecemos. Inertes aguardamos a hora em que algo colida com as nossas vidas. Uma parte tenta afundar a outra. Destituídos de peso somos a vigília do sono. O tumulto do mundo.
Permitimo-nos ser atropelados por aqueles versos com que despertamos em cada manhã – «fingem-se de frias e pousadas dentro dos nomes essas coisas bravas por fora de mim»1. E arrastamos raízes que nascem do chão e nos prendem os pés. Esmorece a sabedoria e os dias e as noites são de espanto, enquanto no bosque silenciam pedras preciosas. Vozes milenares murmuram provocando nódulos que velozes se despenham sobre os ombros. É uma antecâmara azul essa melancolia que às vezes toma conta do nosso ser.
E de repente basta-nos a beleza. A satisfação de olhar o surreal a acontecer. Respiramos labaredas em ondas manuscritas sobre o mar. Num excesso de luz há uma face límpida que nos lava. Conduz-nos até à água. É dona do mistério e da sagração das cisternas. Ergue-nos o braço em direcção ao sol. É meio-dia e o Sul retrai o volume da sombra. Sorrimos ou, de olhos abertos, deixamos de observar a solidão. Então, o céu alarga-se e algumas bátegas de chuva são pólen em terra arada. O instante tem a leveza de um manto macio e alguns nomes rompem o dia.
1 Carlos Poças Falcão, Arte Nenhuma
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia