A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

“Esmorece a sabedoria e os dias e as noites são de espanto, enquanto no bosque silenciam pedras preciosas.”

São tantos os dias em que caminhamos por aí. Pensamentos vagueiam como se quisessem encontrar outro caminho. Esses dias, esses dias. Perdidos entre sonhos e planos e caminhos a indagar. Ouvimos The Velvet Underground sentados em esquinas de pedra para não esquecermos os nossos fracassos. Um dia somos capa de revista e acreditamos que, noutro dia ainda mais distante, contracenámos num filme de Fellini. Mas a câmara lenta arrasta-nos por carreiros sombrios. O corpo amedrontado a querer esvoaçar. Como se vivêssemos à vez.
Por baixo das pedras existem herméticas encruzilhadas. Imperfeitas alegrias fossilizadas. Uma realidade onde se avança e se recua. Como se fôssemos seres duplicados. Polos opostos – de um lado a razão e a calma, do outro a imprevisibilidade das emoções. Aluviões circundam a pele. Arquejante é o corpo obscuro perpetuado no olhar. Sente-se uma catástrofe a atravessar o poema. Cada verso é inverso a si mesmo. E o peso do mundo é um relâmpago na ponta dos dedos.
Descobrimo-nos perdidos na música que criámos. Sobram os ruídos. Já nada renasce em Fevereiro e o frio entra pela porta da rua. Somos alheios à narrativa. Ângulos inesperados edificam um quarto onde nos fecham. Uma força poderosa afasta-nos de nós e ensurdecemos. Inertes aguardamos a hora em que algo colida com as nossas vidas. Uma parte tenta afundar a outra. Destituídos de peso somos a vigília do sono. O tumulto do mundo.
Permitimo-nos ser atropelados por aqueles versos com que despertamos em cada manhã – «fingem-se de frias e pousadas dentro dos nomes essas coisas bravas por fora de mim»1. E arrastamos raízes que nascem do chão e nos prendem os pés. Esmorece a sabedoria e os dias e as noites são de espanto, enquanto no bosque silenciam pedras preciosas. Vozes milenares murmuram provocando nódulos que velozes se despenham sobre os ombros. É uma antecâmara azul essa melancolia que às vezes toma conta do nosso ser.
E de repente basta-nos a beleza. A satisfação de olhar o surreal a acontecer. Respiramos labaredas em ondas manuscritas sobre o mar. Num excesso de luz há uma face límpida que nos lava. Conduz-nos até à água. É dona do mistério e da sagração das cisternas. Ergue-nos o braço em direcção ao sol. É meio-dia e o Sul retrai o volume da sombra. Sorrimos ou, de olhos abertos, deixamos de observar a solidão. Então, o céu alarga-se e algumas bátegas de chuva são pólen em terra arada. O instante tem a leveza de um manto macio e alguns nomes rompem o dia.

1 Carlos Poças Falcão, Arte Nenhuma

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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