És uma ave. Às vezes pousas no cimo de um rochedo. A tua sombra deixa a visão das asas. Como se um anúncio ao mundo – de fragilidade não se veste a esfinge, que a luz é doada e se recolhe nas mãos. E ao redor um abismo por onde o som do fogo se deixa cair.
És imperfeita. Por entre gestos soltos amas todos os seres. Alimentas a chuva. Dás de beber às feras. Regressas a casa e os gatos aguardam numa invisibilidade lunar. Roçam-te as pernas e estala na memória a macieza da pele. Passas a mão nessa réstia de veludo e um tecto ergue-se sobre ti.
És um peixe. Fintas o anzol como exímio nadador. De nada serve a intensidade das palavras. Águas profundas lavam as dores. As cicatrizes são fissuras nos pulmões, raízes fundeadas na solidão. O escuro apaga-se nas volutas dos teus dedos e o silêncio é um movimento pacificador.
Queimas. Vulcões activos mapeiam as tuas zonas interiores. São membranas fugazes. Respiras como te ensinaram e reinventas essa cadência onde abrasas as emoções. É intensa a lava. Que escorra e novos arquipélagos se exponham. Deixas cair a brancura do roupão e o teu corpo é uma montanha brilhante.
És exaltação. Quando danças tribal e selvagem. Na cintura a luxúria das pedras preciosas. Risos aniquilam uivos e lamentos. Que se acomodem as revelações. Uma verdade dispara dessa transparência com que pintas a pele. Ondulante sobes às árvores. És uma cobra descalça.
Estática observas. Os olhos incrustados na visão do mar Egeu. Há ilhas dispersas onde o sol oculta a paixão. Se gesticulares serás imortal. Adornarás pórticos de templos gregos e um dia acabas por desabar – estilhaços de mármore de um qualquer capitel. Então, ergues-te vitoriosa e acedes ao apelo do mar.
Escreves fábulas alucinantes que sacodem a noite. A pulsação solta-se da voz e acolhe o ar. Há um desencontro, um leve movimento decadente. Abençoada é a sombra que abre clareiras onde fazes a cama. Choras e não sabes o que aconteceu aos lobos da tua infância. Ao longe crês o assobio volátil do pastor.
Remexes os astros e um louvor ritmado faz pulsar a terra. Tens a agilidade da águia, a perfeição do canto das baleias. Na refração da luz exiges a velocidade do som. Gela-se o teu sangue na anuência do que ignoras. Mas há sempre terras novas por colonizar. O mundo é um pomar ao meio-dia. Um amante sentado a louvar o mar.
A inutilidade das coisas
«O mundo é um pomar ao meio-dia. Um amante sentado a louvar o mar»