A espiritualidade da casa estende-se pelas paredes. Sonoridades incógnitas rasgam os tectos de madeira e arranham numa invocação de voz remota. Não fosse a dor a abrasar, o sol aqueceria a fundura do poço. O muro continua a desfalecer no jardim. Os portões são grandes línguas insulares onde o violoncelo repousa. Só o silêncio exorta as memórias
Sonha com árvores que nunca viu. Sabe da sua existência pelo nome que lhe dão. Desejos de rituais, revisitados por crenças ancestrais, numa terra envolvida em mar mareiam-lhe os sentidos. Senta-se por dentro da sombra majestosa e aguarda que rebentem as raízes. Que a água jorre. Desde sempre soube existir uma árvore da vida com uma escada para o céu.
É noite e as cinzas são opressivas. Roça na pele o desconforto do lençol. Apaziguar é a sua batalha. Despistar as tempestades e inventar para-raios que recolham as pedras. Minimizar os danos. Armadilhar fragilidades que arrumem a morte que se quer projectar na sombra. Agora sonha com grinaldas de sons brilhantes. Palavras duráveis que possam incarnar o dia.
Uma quase cegueira abre-lhe os olhos. Espanta-se. Ao seu redor um deserto. Por dentro um motim. Forças densas entrecruzam-se e alastram num turbilhão. Quer afastar o declínio, aquele rigor do engano. Parecem-lhe longínquas as árvores e da escada não há sinal.
A rua granítica termina no mar. Só terá que passar o portão. Transgredir o silêncio do violoncelo. O mar é um mistério que persegue. Expande-se nessa distância que destrona a loucura. Procura o vestido azul e as luvas que lhe cobrirão os braços acima dos cotovelos. Os cabelos soltos – convocação do vento.
A noite está clara. Vai sussurrando um cântico suave e triste que fala de rosas e perfumes. É um sobressalto de constelações esse princípio do mundo. Leva a fragilidade escrita nos pés descalços. Forças estranhas dobram-lhe o corpo como dias adiados ou meses separados pelos dedos. Na espuma lava a brevidade da cólera. A linha do horizonte é uma faca de luz.
Deixa que os sussurros caiam na água como enxames. Que nenhum náufrago regresse. O mar é essa zona intermédia onde os mundos se separam. Ali chegou pelo rio do esquecimento. Ali se sacrifica. Num choro aberto volta ao cântico suave e triste. Chama-se Aleah e insiste no refrão – Mother, let me live to see the day go by
Save me from myself.
A inutilidade das coisas
«Sonha com árvores que nunca viu. Sabe da sua existência pelo nome que lhe dão. Desejos de rituais, revisitados por crenças ancestrais, numa terra envolvida em mar mareiam-lhe os sentidos»