A cadeia da Guarda – Coragem e cobardia

Escrito por Francisco Manso

“Na altura destes acontecimentos a cadeia da Guarda funcionava num edifício da Praça Velha, onde mais tarde, em 1927, foi instalada a Câmara Municipal. Passou depois para o edifício do antigo Seminário, onde está o Museu da Guarda, e mais tarde, em 1956, para as atuais instalações.”

Estes factos são verídicos e narrados dentro dos limites possíveis a que o decoro nos obriga, e da névoa que a passagem do tempo põe em tudo.
A Primeira Guerra Mundial já tinha acabado, Aldeia Viçosa, no concelho da Guarda, então ainda Porco, era terra simples e pacata, onde se vivia da agricultura e de algum comércio.
Na altura destes acontecimentos a cadeia da Guarda funcionava num edifício da Praça Velha, onde mais tarde, em 1927, foi instalada a Câmara Municipal. Passou depois para o edifício do antigo Seminário, onde está o Museu da Guarda, e mais tarde, em 1956, para as atuais instalações.

A família Soares

José Soares era um homem trabalhador e honesto, que na ânsia de poder levantar a cabeça, ensaiara vários ofícios, mas falhara em todos.
Casara com Maria de Jesus Rebelo, uma bela rapariga, que, cansada de tanta pobreza, não parava de se lamentar e de o recriminar, lembrando-lhe os casamentos vantajosos que tinha perdido para se juntar àquele homem cheio de sonhos e de dívidas.
A falência levara-lhes tudo, até mesmo a casa onde viviam com a filha Lucinda. Tiveram, por essa razão, de ir viver para um pequeno casebre, mesmo ao fundo da aldeia, herdado dos pais de Maria de Jesus, onde dormiam no chão, sobre velhas enxergas, já meio desfeitas pelo tempo e pelo uso.
À filha, com dez anos, decidiu empregá-la, como serviçal, em casa de um alfaiate. Um dia, Lucinda, com a cabeça partida e o cabelo todo empastado de sangue, entrou-lhe pela casa adentro: tinha sido a patroa, mulher do alfaiate, que, por motivos bem fúteis, a tinha desancado.

Figura 1 Cadeia Em Obras Para Adaptação A Câmara.

1.Cadeia Em Obras Para Adaptação A Câmara.

José Soares lavou-lhe a ferida com carinho, mas não tentou sequer desafrontar-se da vergonhosa agressão. Era pobre, o pão que o rico lhes dava era amassado em sangue e lágrimas, mas serviu para se reencontrar e procurar um destino e uma vida melhor. Tinha que proteger a sua filha dos ataques da miséria, e ir para o Brasil.
Tirou o passaporte na Guarda e comprou o bilhete para Manaus, bem no coração do Amazonas. Chegado ao seu destino, em vez da riqueza e da felicidade, foi o infortúnio e a miséria que o esperou, vegetando na obscuridade da selva.

Lucinda

Voltando a Aldeia Viçosa, Lucinda, que era uma criança quando o pai partira, torna-se uma bela rapariga. Todas as noites, com os olhos pregados no céu, rezava, suplicando a Deus o milagre de lhe devolver o pai.
Pobre, vivia contente na pacatez da aldeia, sem ambições nem loucuras.
Admiradores da sua beleza não lhe faltavam, para desconsolo de outras raparigas mais ricas.
Mas, tinha ela vinte anos, o amor bateu-lhe à porta e ela não a fechou. Trava-se de Luís de Albuquerque, um agricultor da Faia. Sóbrio e digno, e ainda por cima abastado, era um pretendente desejado por todas as moçoilas da região.
Por isso, assim que se teve conhecimento do namoro, a inveja começou logo a tecer enredos à sua volta.
E como já fossem muitos, Luís foi falar com o padre João Baptista Arraiano, pároco da Faia, que lhe recomendou que falasse com a mãe de Lucinda, mostrando-lhe a honestidade dos seus propósitos. Desde então, a seguir ao jantar, lá calcorreava os caminhos até Aldeia Viçosa e ia seroar na casa de Maria de Jesus.
Apesar da grande desigualdade económica das duas famílias, os pais de Luís concordaram com a escolha do filho e assentou-se o casamento para fins do ano, quando ele regressasse de Coimbra.

Coragem

Já o Luís, regressado de Coimbra e tudo aprontado para o casamento, um cão começou a esgravatar a terra no quintal de Maria de Jesus, que pôs a descoberto, perante os olhares esgazeados da garotada, um feto humano, ainda bem conservado.
A notícia da macabra descoberta rapidamente se espalhou e em pouco tempo era uma multidão que enxameava o quintal e os muros. Um cabo da guarda depressa se dirigiu a casa de Maria de Jesus, que, a tremer, o recebeu à porta. Lá dentro, Lucinda, sem dizer uma palavra, chorava que nem uma louca.
E, perante a surpresa do cabo e da própria mãe, Lucinda, com um ar tão triste que metia dó, declarou-se culpada, mas sem indicar o seu cúmplice. Com ordem de prisão, seguiu para a Guarda.

A cadeia da Guarda

Na sala de audiências do tribunal, que mais tarde veio a ser o salão nobre da Câmara, não se cabia. A mãe, que desde a prisão da filha envelhecera precocemente, passara a vestir-se de luto.
O juiz, apesar da gravidade do crime, invocou a confissão espontânea da ré e condenou-a a seis anos de cadeia, uma pena mais leve do que seria de esperar.
Era já noite cerrada quando a sentença foi lida e o povo, ao ver Lucinda descer para recolher à sua cela, abriu alas para melhor poder ver o monstro. À porta de entrada da cela, Luís, de semblante carregado, esperava-a e ela baixou os olhos. Mas ao ver o escarro que Luís lhe lançou na cara, aí, sim, Lucinda foi-se abaixo e sentiu faltarem-lhe as forças.

Figura 2 Atual Cadeia Ainda Em Obras.

2.Atual Cadeia Ainda Em Obras.

Mas Luís também estava destroçado, a vaidade que ele tinha na sua Lucinda era agora substituída pela vergonha e pelo enxovalho dos rapazes das aldeias vizinhas. Sem vontade de viver, dias depois, deixando o pai e a mãe num mar de lágrimas, seguiu de comboio para Lisboa e daí embarcou para Angola.
Na cadeia da Guarda, considerada a mais terrível do país e da qual se dizia que quem ali cumprisse pena, era a dobrar, Lucinda ia mirrando de dia para dia, encerrada num pequeno e imundo catre que nem retrete tinha, com um frio de enregelar, ia sofrendo em agonia o seu calvário. Cartas, poucas, apenas do pai, primeiro recriminatórias, depois mais suaves e por fim uma manifestação de amor e carinho.

Cobardia

Também Maria de Jesus padecia tormentos. Sentindo que a hora da morte se aproximava, pediu a uma vizinha para chamar o padre. Este ouviu-a em confissão e ficou estarrecido, lívido!
Suplicou-lhe:
– «Prometa-me, senhor prior, tratar quanto antes daquela desgraçada. Quero que esta mulher saiba toda a verdade da minha boca. Ela se encarregará de a espalhar na aldeia».
– «Desejo dizer-lhe que fui eu quem praticou o crime que minha filha paga na cadeia. Essa infeliz está tão inocente como no dia em que nasceu».

Figura 3 Câmara, Séc. Xix

3.Câmara, Séc. Xix

Maria de Jesus morreu no dia seguinte.
Quando o padre contou a segredo às autoridades judiciais, ficaram estupefactas e incrédulas. Como era possível tamanha coragem de uma filha e tanta cobardia de uma mãe?
Confirmada a veracidade dos factos, Lucinda deu a explicação: Queria furtar a mãe aos horrores da cadeia e o pai ao escárnio.

Epílogo

Pouco depois, o telégrafo levou a notícia aos confins do Brasil e de Angola. De pronto, dois homens, de coração apertado e a cabeça atormentada, pois os maus pensamentos também são um pecado, atravessaram as águas do oceano e vieram beijar-lhe as mãos.
Luís, a quem a fortuna tinha sorrido no sul de Angola, vinha pedir-lhe desculpa pelo escarro do tribunal e dizer-lhe que ainda a amava e a queria para esposa, estivesse ela de acordo.
Estava, e depois de tratada a sua debilitada saúde, casaram perante o aplauso de todos, até das raparigas da aldeia.
Partiram, pouco depois, para Luanda, e deles não voltei a ter notícias.

Figura 4 Antiga Câmara.

4.Antiga Câmara.

* Investigador da história local e regional

Sobre o autor

Francisco Manso

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