Nesta edição natalícia, conversamos com uma das figuras que foram a pouco e pouco desaparecendo das casas dos portugueses e deixadas em lugares mal iluminados ou mesmo deixadas ao abandono. Não nos referimos à bisavó que passa o Natal no lar, porque essa já está cansada de dar entrevistas aos canais de televisão, mas a uma também vetusta, porém singela, Meia de Natal. Também não se trata de uma das centenas de milhares de meias que são oferecidas muito imaginativamente como prenda da Natal, mas as clássicas meias que se penduravam e onde o Pai Natal deixaria os presentes para cada um dos membros da família.
P – Meia de Natal, como tem passado? Vemo-la um pouco enrugada.
R – Tenho passado assim-assim. Numa prateleira empoeirada, é o que é. Se ao menos fosse numa prateleira dourada, como os ricos, que quando já não são necessários são promovidos para um lugar onde não fazem nada, mas recebem muito na mesma, até nem me importava muito. Mas eu fui mesmo despedida. Dispensada, como se diz agora.
P – Quais foram as razões para essa dispensa?
R – Isto é tudo culpa da ganância, sabe? As crianças já não se contentam com uma bonequinha, um carrinho, um saquinho de bombons, que cabiam perfeitamente no espaço que há aqui dentro. Ele é consolas de jogos, casas de bonecas, veículos a pedais. Se é para ensinar as crianças a serem uns revolucionários ou uns reacionariozinhos, ofereçam-lhes coisas que ocupam pouco espaço, como os programas dos partidos, que todos juntos cabiam no meu regaço. Além disso, agora ninguém quer deixar prendas em meias. Já não há paciência para esperar pelo dia seguinte, e toda a gente quer que se saiba quem é que ofereceu o quê. Em vez de meias vaidosas, são meias vaidades.
P – Tem saudades das noites de consoada?
R – Ah, então não tenho… Aquelas noites geladas de dezembro, à espera que as crianças chegassem pela manhã, para ver o que o Pai Natal lhes tinha trazido. Gostava tanto da Consoada, a reunião de família em que alguém fazia sempre várias piadas racistas e muitas sobre sexo, daquelas que deixam toda a gente desconfortável. Ou quando a família inteira, reunida à volta da mesa, acabava sempre a discutir por causa de partilhas ou da amante de um deles. As mais felizes eram quando alguma das galdérias da família revelava que estava grávida, quando já não era possível esconder que o inchaço não era só das filhoses.
P – Meia de Natal, quer deixar uma mensagem de esperança para o futuro das crianças?
R – Se isto fosse um jornal literário, respondia como o Luiz Pacheco. Como é um jornal de família, digo às crianças que se entretenham com o Tik-Tok e a Rita Matias. Sabe, entre a inteligência artificial e a estupidez natural, não há espírito de Natal que salve a vossa espécie. Quando derem conta, estarão como eu enfiados numa gaveta a ganhar pó, enquanto as máquinas se entretêm a discutir a melhor maneira de cozinhar bacalhau digital.
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Perfil
Meia de Natal
Acessório mais presente no Natal, mas entretanto caído em desuso
Idade: Indefinida
Naturalidade: Onde Deus quiser
Profissão: Indefinida
Livro preferido: “Pipi das Meias Altas”, de Astrid lindgren
Filme preferido: “Nove Semanas e Meia”, de Adrian Lyne
Hobbies: Aquecer pés