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Vampiros e mortos vivos

Bilhete Postal

A importância do inexplicável em nós é também uma força criativa, um poder imaginativo que consegue produzir fobias e negações. Podemos rejeitar uma comida que nunca provámos apenas com receio de ser algo repelente. Rejeitamos comer cobras e ratos numa cultura que é nossa, mas incompreensível noutras latitudes. Comer porco é impensável para milhões de muçulmanos e para nós é um petisco, um manjar caro e gourmet nalgumas ocasiões. Recordo a curiosidade incomunicável linguisticamente de uma criança que, a quatro patas no chão, imitava um grunhido de porco e me questionava com gestos se eu comia o “grrr grrr”. Era a primeira pergunta de três miúdos que indagavam se aquela pessoa comia porco. “És estrangeiro?” Começaram. “Americani?”, logo seguido de um “Comes porco?” dito em árabe mas com a mímica perfeita. Sequência descabida mas real e possível em frente ao meu apartamento em Jubail, na Arábia Saudita. Somos estranhos, porque convivemos de perto com animais, temos cães em casa, temos leis que permitem casar homens com homens, deixamos as nossas mulheres despidas na praia, decotadas pelos passeios e no trabalho, comemos carne de porco, muitos não acreditam em Deus. Esta relação de uma diferença abissal é explicada às crianças desde cedo. Não são radicais, não são bandidos, são crentes numa postura escrita no Corão e orientadora de fronteiras de comportamento. Não querem deixar de cobrir as cabeças, não querem ver-se desnudos e expostos em circunstância alguma. Trilham a vida com um pudor que foi morrendo por aqui. A diferença coloca-se com a quase totalidade dos muçulmanos que coabitam connosco e discordam dos nossos hábitos e os referenciam por errados e inapropriados. Assim se forma a mais complexa das diferenças que pode explicar a mais simples das rejeições. Como seria a reação a uma família “gay” numa cidade Mormon? Como correria o desembarque de um restaurante da Mealhada no Dubai? Como seria recebida uma família cigana num condomínio fechado em Lisboa? Não se trata de racismo, não se trata de xenofobia, é conflito de culturas e coloca o estranho no lugar dos imaginários atrozes. Só a exposição e a proximidade poderia fazer mudanças mas se a intolerância for bilateral não há cura.

Por: Diogo Cabrita

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