As recentes eleições intercalares para a Câmara Municipal de Lisboa suscitam-me uma reflexão de fundo sobre a nossa democracia. Em primeiro lugar, pela preocupante dimensão da abstenção: 62,61%. Em segundo lugar, pela anomalia institucional que representa a eleição de uma Câmara sem a correspondente eleição da Assembleia Municipal. Em terceiro lugar, pela dimensão dos resultados obtidos pelos independentes.
1. É claro que, com a data escolhida para as eleições, já era previsível um aumento da abstenção. Só não era previsível uma abstenção tão vasta. Neste sentido, o sistema de democracia local acabou por dar preocupantes sinais de indiferença política, mesmo quando a situação financeira e a paralisia institucional da Câmara pareciam exigir dos cidadãos maior activismo participativo. A questão que se põe, todavia, é de saber se este não é um problema mais geral da democracia representativa. Creio que sim. Mas também é claro que o actual sistema de democracia local não ajuda.
2. Há muito que está disponível, já na própria Assembleia da República, uma proposta de alteração profunda do actual modelo institucional da democracia local, em particular no que diz respeito à formação do executivo municipal, às relações deste com a Assembleia Municipal e às competências do órgão deliberativo. O actual modelo, a que chamo «modelo consociativo», fazia sentido no início da nossa democracia, quando era necessário promover aprendizagem política democrática e institucional em todos os quadrantes ideológicos, dotar o sistema de suficientes – mas, então, escassos – recursos humanos politicamente qualificados e conseguir uma plena integração democrática dos cidadãos pertencentes aos diferentes sectores políticos e ideológicos. Hoje, com a maturidade democrática que o sistema atingiu, não se justifica uma moldura institucional deste tipo, mas sim uma moldura política que promova a alternância, a clara imputação de responsabilidades políticas e a valorização política do órgão deliberativo municipal. Mais. O actual sistema tem contribuído para distorcer o próprio processo democrático interno dos partidos, através da instrumentalização permanente das posições de poder no interior do aparelho autárquico para fins internos. Por isso, torna-se cada vez mais necessário promover a clareza nas relações institucionais do poder autárquico.
3. De não menor relevância é a crescente emergência do fenómeno da «independência» na cena política autárquica. Em particular nestas eleições – e sem esquecermos os fenómenos de Oeiras, Felgueiras e Gondomar -, onde o independente Carmona Rodrigues se posiciona em segundo lugar, à frente do maior partido autárquico actual e segundo partido nacional, e a independente Helena Roseta supera o PCP e o BE. Estes dados, verdadeiramente impressionantes, confirmam uma tendência que se vem afirmando crescentemente nas sociedades contemporâneas, isto é, a progressiva marginalização da componente orgânica (burocrático-administrativa) das formações políticas, cada vez mais substituída pela componente comunicacional e de imagem. O universo dos partidos, dos sindicatos e da natureza orgânica da política, seja ela democrática ou autoritária, próprio do século XX, está a sofrer uma profunda mutação, dando lugar ao universo da comunicação, da informação, da personalização e da natureza inorgânica da política. No centro deste processo estão os «media» convencionais – televisão no topo – e a «rede». Ou, para glosar Castells, a «mass communication» e a «mass self communication» . De outro modo, como seria possível fazer emergir, praticamente do nada, fenómenos políticos vencedores? Lembremo-nos de Ross Perot, de Pim Fortuyn, de Berlusconi, e por aí adiante. É certo que nem Carmona nem Roseta saíram do nada. Ambos tinham conhecido uma grande exposição pública e mediática através dos seus partidos de eleição, PSD e PS. Mas este facto confirma o problema de fundo: a emergência do inorgânico como proposta política potencialmente vencedora.
Tal como os «media» tendem a ver no poder político a principal ameaça à «liberdade negativa», assim os protagonistas do inorgânico começam a ver nos partidos políticos tradicionais a principal ameaça ao exercício da cidadania activa. O que talvez não saibam é que também eles, se perdurarem, acabarão por se tornar protagonistas de um novo orgânico que eles próprios acabarão por criar. Ora é nesta nova forma de «organicidade» que reside a grande questão. E não há dúvida de que os partidos políticos terão que a compreender para lhe responder com eficácia: revitalizando a massa crítica interna, promovendo uma crescente permeabilidade e interacção com a sociedade e valorizando politicamente os recursos culturais de que podem dispor. Só assim poderão contribuir para a revitalização da democracia, evitando o declínio.
Por: João de Almeida Santos