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Por pontes e estradas “romanas”

Nos Cantos do Património

Não há a mais pequena terra de Portugal que não exiba orgulhosamente a sua calçada ou ponte romana bem assinaladas por intermédio de várias placas indicativas. Tratam-se de estruturas que se dispersam regularmente por todo o território nacional, e que são particularmente abundantes nas Beiras. Nesta ânsia de atestar a antiguidade dos diferentes locais através de construções romanas, chegou-se mesmo ao caricato cartão postal dos Açores, onde figura orgulhosamente a ponte romana da ilha de S. Jorge.

Pressupõe-se assim que toda a estrada calcetada e toda a ponte antiga são romanas, o que não corresponde de facto à realidade. Estradas calcetadas e pontes de pedra seriam excepções e mesmo as que terão existido, não subsistiram até nós de forma inalterada.

Tomemos o exemplo das pontes. São muito poucas as pontes genuinamente romanas conhecidas em Portugal, salientando-se a ponte de Trajano, em Chaves, e a ponte de Vila Formosa, em Alter do Chão. Mesmo estas encontram-se hoje profundamente alteradas, devido às contínuas obras de manutenção que foram sofrendo. Apenas uma análise cuidada lhes revela as origens. De entre as características identificativas podemos salientar o tabuleiro plano, e não em cavalete, como a maioria das pontes ditas romanas, e os arcos de volta perfeita, e não em ogiva. Nestes arcos reside uma das características identificativas fundamentais, as marcas do forfex nas suas aduelas. O forfex era um gancho de metal empregue para elevar os pesados blocos, nos quais eram escavados dois pequenos orifícios em lados oposto, para o gancho se fixar. A presença destes orifícios será um bom indício de estarmos perante uma ponte romana, pois este método foi posteriormente abandonado.

Já a atribuição de uma cronologia romana a uma calçada resulta mais trabalhosa. Por costume, atribuem-se todas estas estruturas à rede viária romana. Este facto encontrará explicação numa má leitura da obra clássica de Vitrúvio acerca da arquitectura, que se encontra expressa em muitos manuais escolares. Aí se explica que todas as estradas romanas eram construídas por meio de diferentes camadas de pedra.

Os romanos foram notáveis construtores de estradas, tendo inventado, os marcos quilométricos (ou melhor, miliários) e as passadeiras para peões, que ao mesmo tempo serviam de lombas para evitar o excesso de velocidade das carroças. Não poderemos, no entanto, dizer que todas as suas estradas eram calcetadas. As calçadas romanas restringiam-se às ruas urbanas e ao que poderíamos chamar de “auto-estradas” militares, que serviam para deslocar tropas rapidamente para os diferentes pontos do Império. Claro está que eram depois utilizadas por todos os que delas necessitassem, sem serem por isso forçados a pagar portagens, como acontece nos nossos dias. A maioria das estradas romanas seria simplesmente de terra batida e o recurso à pedra na sua construção ficaria reservado a zonas de difícil progressão ou manutenção do piso.

Dito isto, torna-se difícil perceber que em zonas remotas do Império, cedo pacificadas, exista uma tal profusão de estradas romanas calcetadas. Como identificar então uma calçada romana? Uma das formas ideais seria a sua escavação e a identificação de materiais romanos sob o pavimento. Ora isto é muitas vezes impossível. Sendo assim, recorre-se aos itinerários clássicos e à localização das cidades neles referidas, à análise da distribuição dos marcos miliários e das distâncias aí inscritas, à análise da distribuição de vestígios romanos, da geomorfologia e até à análise da fotografia aérea. O que hoje procuramos identificar é o trajecto dessa estrada, que na maioria dos casos desapareceu em termos físicos.

Ao atribuirmos todos os méritos da construção de pontes e estradas aos romanos, estamos a retirá-los a muitos dos seus verdadeiros construtores, que se distribuíram pelas épocas medievais e modernas. O facto da maioria destas construções não serem romanas não lhes retira valor. Elas devem continuar a ser assinaladas, estudadas e valorizadas, pois fazem parte do nosso património colectivo. O povo continuará a classificar pontes de pedra e calçadas como romanas, tal como classifica as antas como obras da moirama E daí não vem mal nenhum ao mundo. Podemos apenas relembrar-lhe que, se nem tudo o que luz é ouro, também nem todas as calçadas são romanas. Já os estudiosos e eruditos locais deverão ter mais cautelas, no seu desejo de caucionar a antiguidade das suas respectivas localidades.

Por: Luís Luís

* Arqueólogo do Parque Arquológico do Vale do Côa

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