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O Interior

Estive na semana passada no jantar do sétimo aniversário do Interior. Ouvi com interesse a intervenção do Director, considerando a espaços que a extensão do discurso era directamente proporcional à longevidade do jornal – o que é perfeitamente compreensível. Numa antiga tira do Calvin, este mostra ao tigre Hobbes a sua autobiografia, constituída por uma simples página, e explica-se: “eu só tenho quatro anos, ainda não tenho muito para contar”. Não sei como será daqui a treze anos, em que o jornal vai celebrar duas décadas, mas tenho a certeza de que o Director vai ter matéria de sobejo. Vai certamente demorar o seu tempo e eu, então a fazer sessenta anos, irei aproveitar para dormir uma soneca nas partes menos animadas. Recordo a propósito, se calhar mais uma vez, o célebre episódio de Jean Paul Sartre, a querer falar aos estudantes em Maio de 68, em Paris. Quando ia começar gritaram-lhe lá de trás: “soi bref!”. Mas divago.

Recordo agora um episódio mais recente. Referia o Expresso, há umas semanas atrás, como pretexto para desvalorizar a nossa cidade, o défice de intervenção, de participação democrática na cidade da Guarda. Deu exactamente a mesma classificação nesse item à Covilhã, mas por lá refilaram. Para o Expresso, a Guarda e a Covilhã têm em vigor uma versão menos democrática do regime que rege a república. É certo que não somos a Madeira, mas também não estamos muito melhor. Por aqui fala-se em voz baixa. Critica-se nos cafés, em sussurros, e na Net, em blogues anónimos. Nos programas de debate na rádio abertos ao público ninguém se quer identificar, todos mostram medo de represálias. Repare-se no correio dos leitores dos jornais locais: poucos têm a coragem de intervir, de criticar abertamente, de manifestar indignação. Repare-se também nas atitudes típicas dos políticos da região: à critica mais contundente, à menor insinuação de que as suas majestosas pessoas possam ser um pouco menos luzidias, lá vêm os advogados e as queixas por difamação agravada. É verdade que a coisa se costuma resolver com um hipócrita textozinho na página 8, eventualmente com chamada de primeira página, em que sua majestade é reposta com todas as honras no pedestal, mas ninguém acredita.

É neste ambiente, saudoso de Salazar e dos sórdidos tempos do “respeitinho”, saudoso no fundo do chicote, que aparece este jornal. Não vamos agora fingir que mudámos tudo, que acabámos com as chamadas de primeira página para as hipocrisias da página oito, mas acredito que agora o leitor, quando abre as páginas do Interior, sente que tem nas mãos informação de confiança, não alinhada, não subserviente, não salazarenta, sobre o que se passa à sua volta.

Sugestões

Um livro: Donos do Mundo (Juan Carlos Castillón, Bertrand Editora, 2006). As teorias da conspiração revistas com frieza e crueldade. Acreditamos em cada coisa…

Outro livro: Underground (Haruki Murakami, Tinta da China, 2006). O atentado terrorista de Tóquio visto pelos olhos das vítimas. Murakami, autor do poderoso “Kafka à Beira Mar”, entrevista dezenas de intervenientes, de vidas comuns que nada tinham a ver com a causa de que foram vítimas. Conclusão? Não tenho nenhuma, mas tenho uma pergunta: para que serve um atentado terrorista?

Por: António Ferreira

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