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«É um livro de memórias e da história da região e dos bombeiros»

Cara a Cara

P – Como surge a edição do livro “Manuel Madeira Grilo, Memórias de uma vida vivida para a Guarda”?

R – Surge no seguimento de uma vontade que o nosso pai nos fez chegar no último ano da sua doença, altura em que nos deu conhecimento que o estava a escrever. E fê-lo no final de um dos seus mais complicados internamentos na cardiologia do HSM, no início de 2013.

Ele, com a sua vontade de viver e de concretizar todos os seus projetos, disse-nos que “não podia morrer ainda, pois tinha de terminar o livro que estava a escrever sobre a sua vida”. Após ter tido alta, fez questão de “apressar” os seus escritos e agregar toda a documentação fotográfica necessária para o terminar. Foi tendo reuniões com a amiga Carla Susana Marques, que lhe digitalizava os textos e as fotografias. O início de 2014 foi muito complicado para ele, tendo o seu estado de saúde inspirado sérios cuidados. Numa das “janelas de alguma melhoria” deu como terminado o livro e, já a custo e demonstrando muita fragilidade, marcou uma reunião com o Sr. Cónego Geada para lhe mostrar a sua obra e para saber da disponibilidade do Outeiro de S. Miguel para realizar a edição. Depois,… foi tudo muito rápido, o seu estado foi-se degradando progressivamente e não mais falou no assunto. Sabíamos, no entanto, da sua vontade em mostrar aos seus familiares e amigos o “livro da sua vida”, como ele lhe chamava, e no dia da sua partida, fizemos para connosco a promessa de que no dia 11 de setembro de 2015 a sua vontade seria concretizada. Sabendo da existência destes registos e da nossa vontade, alguns amigos disponibilizaram-se para nos ajudar nesta aventura, nomeadamente Elsa Fernandes, que tomou a seu cargo a revisão e edição dos textos sempre em sintonia connosco. É esta a obra que vai ser apresentada, a 11 de setembro, para nosso grande orgulho, sabendo que o pai estará descansado pois a sua vontade será cumprida, deixando o seu recado: «Vamos viver, para vos dar o projeto que foi realidade de vida… Fico por aqui. Não vos esqueçais da nossa região, lutai, correi como loucos, aproveitando a juventude e fazei dela a fortaleza do futuro. Eu por aqui me fico… Mas para continuar a luta que terminará com dor ou nós não seremos o Madeira Grilo».

P – É um livro de memórias ou um contributo para a história da região e, nomeadamente, dos bombeiros voluntários?

R – Sim, é um livro de memórias, das suas memórias… Mas, sendo ele um homem “público” que “viveu” nas diversas instituições e associações onde foi colaborando, dando o seu melhor ao longo da vida, viveu na e para a Guarda e para a sua região, poderemos dizer que sim, também é um livro de e da história da região. E, como uma grande fatia da sua obra foi nos e para os bombeiros, podemos referir que estas memórias também são a história dos bombeiros voluntários do distrito e de Portugal.

P – Manuel Madeira Grilo teve um papel ativo no associativismo da cidade, foi fundador do Núcleo Empresarial da Guarda e grande defensor e impulsionador dos bombeiros. Que faceta da sua vida não coube nesta edição?

R – Apesar de ter sido um marido, um pai e um avô sempre muito preocupado com a família, e preservar muito os valores familiares e da amizade, estando sempre presente em todos os momentos necessários, dizia que tinha a felicidade de nós, filhos, nunca lhe termos dado preocupações, deixando-lhe todo o tempo para se dedicar de corpo inteiro aos seus projetos de voluntariado e realizações sociais. E se há neste livro uma lacuna é, sem dúvida, o relato da sua vida familiar.

P – Teve o reconhecimento público que merecia em vida? O que falta fazer?

R – Os grandes homens, como foi o nosso pai, nunca são total e completamente reconhecidos pelos seus semelhantes. Haverá sempre alguns que se sentirão “incomodados” pela sua verticalidade, honestidade, generosidade, poder de iniciativa, de visão de futuro, de concretização de projetos, sem benefício próprio, não olhando nem pensando em si, mas tão-somente na “sua” Guarda e na região. Embora tenha tido muitas homenagens e atos de reconhecimento públicos e privados, locais, regionais e nacionais, que sempre o emocionaram muito, pensamos que nos últimos anos se sentiu entristecido, desiludido e quiçá “abandonado” pela Guarda, alterando mesmo aquele que sempre foi seu desejo, “o de ficar para sempre na Guarda quando partisse”, transferindo essa vontade, nos seus últimos anos, para as “suas” Freixedas. Sempre nos recordamos que quando o pai dizia que “queria ficar para sempre na sua Guarda”, a nossa mãe dizia: “Sendo assim, depois de partirmos ficaremos separados”… O que o fez mudar de ideias, nunca nos disse, mas pensamos que tenha sido mesmo esse sentimento de abandono que sentiu ultimamente. A sua última homenagem, no dia 10 de junho de 2014, quando foi condecorado pelo Presidente da República, como Comendador, com a Ordem de Mérito pelos serviços prestados aos Bombeiros de Portugal, foi para ele um momento de grande glória, dado o seu estado de grande debilidade, tendo feito, no entanto, questão de estar presente no TMG e de sentir durante todo o tempo a plenitude daquela cerimónia e da sua condecoração. Era, tinha a certeza, o seu último momento de glória, a sua última homenagem, tendo esboçado para a plateia e para as câmaras da televisão um sorriso de despedida naquela que viria a ser a sua última aparição pública. Quanto ao que falta fazer em termos de reconhecimento público, teremos de afirmar que não compete aos filhos dizer o que falta fazer. Isso competirá a quem de direito. Nós estaremos eternamente gratos e orgulhosos do pai que tivemos. Quanto ao que ele entendia, e pretendia que a Guarda lhe fizesse… Ele mesmo deixou escrito na sua nota introdutória: «Não quero que a Guarda nos agradeça, mas desejo que não sejamos esquecidos e o nosso nome respeitado como sempre o foi».

P – Neste livro, que episódio os surpreendeu mais e que desconheciam?

R – Fomos acompanhando, enquanto adolescentes e adultos, o percurso do pai no NERGA, no futebol, nos bombeiros, pelo que os seus relatos não foram completamente surpresas. O seu percurso como professor primário e na Escola dos Gaiatos foram talvez os mais desconhecidos, impressionando-nos a quantidade de nomes de antigos alunos e professores que ele refere na obra. Para além destes, o seu percurso académico, contado na primeira pessoa, eram de algum modo desconhecidos para nós, na sua faceta “boémia” de estudante irreverente, mas sempre sem descurar as suas obrigações.

P – Na vossa opinião, qual foi o projeto que Manuel Madeira Grilo gostaria de ter concretizado e não conseguiu?

R – Numa das conversas que tivemos nos últimos meses pareceu-nos algo preocupado com o destino a dar a todas as suas memórias, as suas condecorações, os seus múltiplos diplomas e certificados, as ofertas variadas que lhe foram dando nas mais diversas ocasiões, enfim, todo o seu espólio, recolhido ao longo de uma vida tão cheia como a dele e que guardou religiosamente e organizou num espaço a que ele pomposamente chamava de “o meu museu particular”, tendo no entanto a vontade de o colocar num espaço público de modo a poder perdurar ao longo dos tempos e ser visto por todos quantos assim o desejassem. Alvitrou algumas hipóteses: ceder o espólio a alguma Instituição pública com que colaborou, aos bombeiros, à Câmara Municipal da Guarda ou à de Pinhel. Mas nada ficou pensado definitivamente.

P – E, entre os que realizou, qual foi o que mais o orgulhou?

R – Talvez os que mais orgulho lhe deram terão sido os eventos nacionais que organizou, como o Festival da Canção da Guarda, transmitido em direto pela RTP num tempo em que esses acontecimentos eram inexistentes e tecnicamente muito difíceis de realizar. Também a representação da Guarda, através da sua pessoa, na Federação Portuguesa de Futebol, a organização das primeiras feiras de artesanato regionais (Beirartesanato), que, por sua iniciativa, enquanto vice-presidente do NERGA, tiveram lugar demonstrando sempre um carinho muito especial pelos artesãos. A Escola dos Gaiatos e o participar na formação de adultos trabalhadores, que ajudou a “crescer” e a serem “homens”, foram outros dos seus orgulhos pessoais. Quanto aos eventos organizados ao longo de décadas nos bombeiros do distrito e de Portugal, a sua “paixão eterna”, como ele mesmo refere no livro, foram tantos, que nos perdemos no número e importância. Esta sua paixão pelos bombeiros estendeu-se até ao final dos seus dias, pois na véspera de partir disse-nos em tom de desafio e confidência: «Quando partir,…. quero ir lá para baixo». Ao que, em resposta à nossa pergunta «para onde pai?», respondeu com toda a certeza do mundo: «Para os bombeiros… Eles devem-me isso» – e assim foi. Os bombeiros fizeram-lhe a vontade, ficando em câmara ardente no salão nobre dos Bombeiros da Guarda nos dias 11 e 12 de setembro de 2014.

P – O que pensam fazer com o seu espólio?

R – O seu espólio é para nós uma preocupação, pois é muito e variado em quantidade e qualidade. Gostaríamos de concretizar também a sua vontade e que fosse visto e admirado por todos quantos gostaram dele. Talvez que um dos municípios, da Guarda ou de Pinhel, consiga disponibilizar um espaço digno para recolher este e outros espólios de figuras reconhecidas publicamente nos respetivos concelhos e organizar aquele a que poderiam chamar de “Museu das Personalidades do Concelho”. Deixamos o repto.

José Grilo e Maria Augusta Grilo, filhos de Manuel Madeira Grilo

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