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Desafio contemporâneo no Museu da Guarda

Albuquerque Mendes e Júlio Cunha inspiraram-se na colecção permanente para criar novas obras

O que tem a ver o quadro de Santa Luzia e Santa Mártir, do século XVII, com a obra homónima de Júlio Cunha? Ou a cabeça de S. Tiago com o “Decapité” do mesmo artista plástico? Tudo e nada. “Confrontos, Dessacralização e Vanguarda” é o nome da exposição de arte contemporânea que está patente no Museu da Guarda até 2 de Outubro com o resultado do confronto artístico entre Albuquerque Mendes e Júlio Cunha. Os criadores foram desafiados a produzir obras de arte contemporânea, em pintura, escultura, fotografia ou instalações, a partir de algumas peças da colecção permanente da instituição. Qualquer semelhança é pura invenção dos artistas.

A mostra surgiu no âmbito da comemoração do Dia Internacional dos Museus, subordinado ao tema “Os museus, pontes entre culturas”. Na Guarda optou-se por “provocar” estes dois artistas plásticos.

Albuquerque Mendes, natural de Trancoso, é actualmente um dos nomes fundamentais da arte portuguesa, enquanto a obra de Júlio Cunha, originário da Guarda, assenta numa estética de fragmentação e na pesquisa de texturas e materiais. De imediato, estimulados e confrontados com registos artísticos e históricos de épocas e temáticas diversas, ambos começaram a produzir novas obras que dialogam com as existentes. A exposição permite reflectir sobre diversas questões, nomeadamente a relação do homem com o tempo, observável, por exemplo, nos relógios pendulares de Júlio Cunha. «Sem ponteiros, marcam um tempo», sublinha Dulce Helena Borges, directora do museu, mas também têm a função de «separar as épocas, desde da Pré-História até à contemporaneidade», acrescenta. As criações deslocam e reconfiguram as obras de arte em contexto museológico, ao mesmo tempo que estabelecem uma interdependência com elas e com a arquitectura do espaço. «Encontram-se fronteiras entre as diversas tipologias artísticas», acrescenta a responsável.

A exposição abre-se ainda à reflexão sobre a importância do objecto artístico, «à forma como o entendemos, ao seu sentido, utilidade e à relação entre o presente e o passado», refere a directora. Através de um jogo de representações, cuja estética se funde com a cultura e formas clássicas, cria-se um discurso interpretativo, «uma fusão de várias culturas, mas também um diálogo entre tempos, espaços, formas, funções». O resultado patente no Museu da Guarda dialoga com as obras de arte sacra e evidencia a função pluricultural que, cada vez mais, é atributo das instituições museológicas. No quadro de Santa Luzia e Santa Mártir, «Júlio Cunha pegou numa tábua maneirista e desmontou-a através da sua linguagem artística», explica Dulce Helena Borges. O artista fez o mesmo com o quadro da decapitação de S. Tiago. «Produziu a sua obra, reconfigurando-a, fazendo até um novo enquadramento», pois está colocada numa porta de ferro onde outrora era uma prisão. A forte presença de múltiplas figurações e iconografias dialogam com a contemporaneidade na linha, na forma, na cor, na mensagem, mas também na relação do criador consigo mesmo e com o mundo que o rodeia. Albuquerque Mendes, por exemplo, apresenta uma instalação intitulada “Sincelo”, fenómeno da Natureza tão característico de Trancoso, a sua terra natal. Ali há cadeiras de estilos distintos que representam o poder das armas (está na sala de armas), mas também, simbolicamente, o poder da água. Noutra peça corroborou o desafio lançado pelo museu, pois «pintou sobre um tecido impresso e provou que uma peça pode ter várias conotações e utilizações», adianta a directora. Dulce Helena Borges espera que o catálogo da exposição já esteja disponível no Verão.

Patrícia Correia

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