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A23: o princípio do utilizador-pagador

Razão e Região

Há dias, em artigo no «Diário Económico» (22.10.04), procurei desmontar a generalização abusiva do chamado princípio do utilizador-pagador. Hoje, procurarei orientar a crítica para o caso da A23.

O princípio do utilizador-pagador só é directamente aplicável e generalizável no plano da economia privada: o valor de uso é convertível em valor de troca no interior do sistema mercado. Bens e serviços só podem ser consumidos mediante pagamento. O mesmo, todavia, não se pode dizer quando se trata da esfera pública: há bens e serviços que são genuinamente gratuitos. Por exemplo, nos sectores da saúde, da educação, da segurança. O Estado social define-se por isso mesmo: determinados bens e serviços essenciais são fornecidos pelo Estado gratuita e universalmente. Os financiadores indirectos destes bens e serviços são os impostos. O Estado é o mediador e, por isso, tem a função de redistribuir as receitas em nome de determinados princípios. Estes princípios não são os mesmos quando se fala de Estado social ou quando se fala de Estado mínimo. Isto é, existe (ou deve existir) sempre proporcionalidade entre os níveis de prestação social do Estado e os níveis de tributação. A mais prestações devem corresponder mais impostos. A menos prestações, menos impostos. Por outro lado, o Estado tem deveres de natureza estratégica: a redistribuição não se pode confinar às prestações correntes de bens e serviços. Ela deve também visar investimentos considerados estratégicos para o conjunto da sociedade. É para a gestão racional e equilibrada das prestações sociais e do investimento estratégico que os cidadãos pagam impostos e delegam soberania no Estado através dos representantes.

Todo este complexo é governado por uma lógica que não é convertível no tão aclamado – pelos yuppies neoliberais – princípio do utilizador-pagador. Precisamente porque a sua generalização equivale, em última instância, ao fim do papel do Estado ou, pelo menos, à redução do Estado a simples forma residual, já que tenderia a desaparecer a sua função mediadora e redistributiva. Com efeito, o Estado mínimo é a utopia desejada da direita neoliberal, que, assim, se aproxima, paradoxalmente, da teoria da extinção do Estado, de leninista memória. Se esta última visava a devolução do poder à classe operária, aquela visa devolver o poder às corporações e aos interesses instalados. Só que ambas se revelam incompatíveis quer com a afirmação de uma cidadania moderna, resultado de conquistas de civilização, quer com as exigências de regulação estratégica das sociedades modernas, em tempos de imposição de lógicas globalitárias.

A transformação do Estado em mera função residual da sociedade moderna só interessa aos poderes fortes, nacionais ou multinacionais. Pouco interessa aos cidadãos. Em particular, à nova e vastíssima classe média. Tanto mais quanto à drástica redução das funções sociais do Estado nem sequer tem vindo a corresponder a equivalente e proporcional redução da tributação, acontecendo mesmo que se vem verificando um efectivo reforço (nos impostos directos e indirectos).

A recente decisão de impor portagens na A23 resulta da aplicação generalizada deste princípio do utilizador-pagador. É este princípio que é invocado para legitimar a decisão, vislumbrando-se também aqui a filosofia minimalista do poder que nos governa. Uma filosofia que, neste caso, não só não cuida de preservar a proporcionalidade entre receitas (impostos) e serviços prestados (funções sociais do Estado) como não cuida de garantir estrategicamente o futuro de uma região economicamente deprimida. Acresce que esta mesma maioria reafirmara, com Durão Barroso, o que agora, com Santana Lopes, vem negar, a validade da SCUT A23, interferindo negativamente na cadeia de expectativas que tinha sido criada aos agentes económicos e aos cidadãos. Fica, assim, esta região também diminuída em relação às regiões fronteiriças espanholas, em grande parte livres de portagens (as chamadas autovías). De resto, os governos espanhóis têm demonstrado, nesta área, uma visão estratégica bem mais consistente do que a da maioria que nos governa. Em 2002, data em que chegam ao poder estes arautos do princípio do utilizador-pagador, a Espanha já possuía 7350 quilómetros de autovías sem portagem, parte dos quais na Galiza, na Estremadura e na Andaluzia, isto é, quase 2500 quilómetros. Que eu saiba, enquanto até já se pagam circulares externas (a CREL), na vizinha Espanha o esforço de dotação em autovías continua. E, como muito bem salientou João Cravinho (Público, 09.10.2004), num mercado regional ibérico, diferenças infraestruturais deste tipo acabarão por determinar graves desequilíbrios económicos nas regiões menos dotadas, já que a sua competitividade estrutural fica, assim, seriamente afectada.

As contradições desta maioria são inúmeras: primeiro diz que manterá a SCUT A23, depois acaba com ela; enquanto vai aumentando a carga fiscal (directa e indirecta) vão diminuindo as funções sociais do Estado; enquanto vão dizendo que querem aumentar a competitividade do país, cada vez mais vão reduzindo as condições infraestruturais para essa mesma competitividade, designadamente no plano ibérico.

Do que eu seriamente duvido é que estes neoliberais que nos governam saibam sequer o que é o contrato social, o que é o Estado social, o que são funções sociais do Estado, em que consiste a função mediadora do Estado! Mas, se sabem, o seu saber é somente um saber instrumental, ou seja, o saber suficiente para que cumpram com eficácia a função de devolver os recursos do país às corporações de interesses, aos poderes fortes e consolidados da ««sociedade civil». De resto, não foi papá Hayek que disse que não sabia o que era a justiça distributiva ou social?

Por: João de Almeida Santos

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