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O feminino ocidental e uma tradição islâmica

Apesar da imponderabilidade dos seus pontos de partida, a crónica pode e deve ser mordaz, satírica e carregada de humor. Mas nem sempre. Porque há alturas em que deve religiosamente bastar-se aos factos, sobretudo quando é preciso sinalizar a realidade que está aí e nos rodeia. Comunicar de maneira sucinta, económica e eficaz tem destas coisas. Dar a ler, dar a ver e até a conhecer, se for o caso, mesmo quando o enunciado que é citado evoca a fé e a possível multiplicidade de leituras. Mas como é um enunciado público e ao dispor de todos – ou seja, como faz parte da realidade acessível – volto a publicá-lo aqui (retirado do livro de El-Bokhâri, L’authentique tradition musulmane – recolha de Hadiths por G.H. Busquet – Sindbad, Paris, 1964, p. 66):

“Segundo Qatada, Anas ben Mâlík contou que o profeta (a ele a bênção e a salvação) dava uma volta conjugal junto das suas esposas apenas no tempo de uma noite e do dia (seguinte), quando elas eram em número de onze. E eu disse a Anas, acrescentou Qatada: ‘Ele era portanto capaz de o fazer? – Nós, respondeu ele, dávamo-nos conta que ele tinha, de facto, a força viril de trinta homens’.”

Estamos no campo das tradições, ou seja, de textos de raiz oral, cuja validade assenta na cadeia de personalidades históricas (isnâd) que as legitimam. São variadíssimas e dizem respeito, no caso do Islão, a todos os aspectos da vida (sem diferença entre aquilo que, no Ocidente, há pouco mas de dois séculos, é o campo religioso e o campo não religioso). Por outro lado, são textos de uma época e de um meio muito concretos e remetem, por certo, alguns deles, para uma expressão hiperbolar (forma de melhor fazer passar alguns aspectos que a fé tem como adquiridas). Neste caso, o excerto insere-se no capítulo IV das tradições recolhidas em antologia por G.H. Busquet (sobre noções de pureza, pudor, descendência e heranças, etc.) e há que saber lê-lo, no mínimo, de modo alegórico.

Mas não há que temer isolá-lo e relê-lo com todo o respeito, sem aquilo que todos os fundamentalismos – mesmo os que não são religiosos – fazem: encontrar na fuga à ‘interpretação única’ um caso de vida e de morte. Não, no caso deste texto celebra-se a força também material e física de um ser humano que, segundo a fé do Islão, recebeu de Deus a última mensagem de uma longa comunicação entre Deus e o homem. Um homem que, ao contrário de Cristo para os cristãos, era apenas um homem e não Deus.

O feminismo que saiba ler estas palavras como o fundamentalismo não é capaz: sem confundir a realidade do que se diz com o mito que a alimenta. Uma sabedoria essencial para perceber que, no mundo, pode e deve caber bem mais do que se imagina. Mas com um óbvio dom em primeiro lugar: a liberdade.

Por: Luís Carmelo

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