Arquivo

O império do anticonvencional

COMO ESCUTAR o som cristalino de uma gargalhada numa sociedade que vive sob o jugo atroador do humor obrigatório? No século XIX era de bom tom exibir socialmente um tédio imenso, como uma espécie de manto de veludo que nos erguia acima dos gozos e das preocupações do comum dos mortais. É curioso observar como essa pose serve ainda de escudo visível a grupos bem definidos e opostos entre si – uma certa direita ultraconservadora, e uma certa esquerda auto-intelectualizante. Une-os uma mesma consciência atávica de superioridade. Escreve Antonio Cicero numa das suas iluminadoras crónicas, no jornal “Folha de São Paulo” (12/7/2008): “Não vejo superioridade nenhuma na pessoa cronicamente entediada. Se alguém, para parecer superior, precisa fingir estar entediada, é porque, na verdade, se sente inferior. Seu ar entediado é uma tentativa de se vingar dessa inferioridade. Por outro lado, uma pessoa que esteja sempre ou quase sempre genuinamente entediada não pode deixar de ser, em primeiro lugar, entediante: ela é entediada exactamente porque se entedia a si própria.”

Porém, o espírito futurista, cibernético, arrasador, que o novo milénio impôs como moda conduziu-nos a um novo império, só aparentemente mais criativo e lúcido do que o do tédio: o do riso generalizado. Houve um tempo em que só as actrizes de telenovela diziam, quando entrevistadas, que o que mais apreciavam num homem era essa coisa indefinível e chique, adornada por uns fumos de inteligência, a que se dá o nome de “sentido de humor”. Agora os homens também já perderam a vergonha de mentir (ou, até, a genuína noção de que mentem) e respondem, olhos nos olhos, que sim, a mulher ideal é a rainha do “sentido de humor” – muito embora a Scarlett Johansson continue a ter mais procura do que a Oprah Winfrey, romanticamente falando.

Subentende-se que o riso é, por si só, uma forma sofisticada de inteligência – e toda a gente se ri de tudo, o tempo inteiro. Os militantes do humor partilham com os aristocratas do tédio uma visão catastrófica do mundo – e, como bem sublinha Antonio Cicero, “o mundo é sempre o mundo contemporâneo”. Tudo está mal – menos quem denuncia o mal, colocando-se assim imediatamente acima dele. “Vivemos sob o império da convenção da anticonvenção”, observa o filósofo francês Alain Finkielkraut, numa entrevista em que, com a extrema lucidez que é seu timbre, analisa as causas e as consequências da ditadura do humor no Ocidente contemporâneo. Inserida num imperdível dossiê sobre o Humor na Literatura, publicado na edição de Julho-Agosto da revista “Magazine Littéraire”, esta conversa alerta-nos para o adormecimento anímico a que o riso contínuo conduz – uma insensibilização progressiva, que faz do mundo uma imensa caricatura, uma realidade virtual, desumanizada, em que os sentimentos das pessoas (desde que essas pessoas sejam outras pessoas, não aquelas que estão a rir) são menosprezados. Assim, tudo o que é sério perde a seriedade – a começar pelos políticos, que são a representação exponencial do sério. O humor todo-poderoso aí está para os derreter, insultando-os, vasculhando-lhes fragilidades, truncando-lhes frases e imagens, transformando-os em bonecos de vudu – George Bush é o exemplo mais evidente deste trabalho de irrisão, e não é certamente por ser o mais acéfalo líder da Terra: que diremos, por exemplo, de Khadafi ou de Ahamadinejad? Nesses casos o humor surge embrulhado no celofane protector das “outras culturas”. É contra a sua própria cultura que o actual maremoto de humor actua, num terrorismo de bombista suicida.

Finkielkraut diz-nos, por exemplo, isto: “Os anos 60 deixaram-nos uma visão das relações entre o indivíduo e o mundo, através da qual aquele exerce sem limites a sua autovalorização. A pessoa que exibe sem o menor pudor a sua vida sexual convence-se de que está a fazer qualquer coisa de extremamente corajoso. Dito de outra forma, é a ausência de lucidez sobre a sociedade actual, é a tendência à automistificação, que torna tanta gente inapta para o humor. (…) O que é incomodativo na autoficção não é apenas a mistura entre o fictício e o vivido, mas a ideia de que esta aventura, tal como a de Rousseau, nunca teve exemplo. Um autor envolvido neste empreendimento deveria, pelo contrário, ter consciência da sua banalidade. Hoje, o elogio automistificador da vivacidade do Maio de 1968 não tolera a menor mistificação. A iconoclastia de 68 adquiriu o estatuto de incontestável. Os iconoclastas transformaram-se em ícones. Quando Daniel Cohn-Bendit pede que esqueçamos o Maio de 68, fá-lo em nome de uma revolta que, precisamente, teria por vocação obedecer ao mesmo paradigma. Se esta iniciativa me inquieta, é porque a consagração da juventude acompanha a emergência e o triunfo do riso bárbaro.”

Os Hugos Chávez deste mundo já perceberam, intuitivamente, o extraordinário poder do riso como estratégia de dominação. Quem ri, contínua e indiferenciadamente, não analisa nem contesta. Acresce que o riso comove, conduz à desculpa. É tempo de percebermos que este humor absolutista não tem graça nenhuma.

Por: Inês Pedrosa

Sobre o autor

Leave a Reply