Aqui podemos sempre parar o carro, abrir a janela e levar para casa os carvalhos e os líquenes que o vidrinho do smartphone consegue captar. Também o verde. O verde nesta altura é tão criança ainda, face rosada, a dar os primeiros passos. Tímidas flores brancas experimentam a respiração da luz. Estendem-se desconhecendo qualquer tormento ou dor. Honram o sol e a todos os bichos da terra falam dos sustos da noite. Cada ser é uma incerteza no dia seguinte. Por entre pequenos muros aparelhados vai subindo o silêncio. É um silêncio real capaz de quebrar rochedos. De lhes abrir frestas e transformar a realidade.
Penso em Turner e em como pintaria o que observo. Tento imaginar a coloração que daria à paisagem, a incidência da luz sobre as cores. Provavelmente já terá ido a Veneza para aí descobrir a fusão da água com a civilização. De Veneza retemos sempre uma imagem difusa e volátil. Veneza é uma sinestesia. Deixamos de ver as formas para as sentir. Os passos são reflexos de nuvens sobre as pedras da calçada. Aí se gravou a beleza que nos permite resistir. Rebuscamos papéis antigos e o poema enche-nos de vento. Todos somos Turner – reclusos e excêntricos. E fundimo-nos.
Ascende a memória até aquele terraço da casa de infância. A caixa de cartão da prima mais velha a transbordar de pincéis e tubos de tinta. Cores e cheiros a desafiarem a curiosidade de criança. Mexo e remexo. Sozinha, como se violasse um segredo. Pela janela aberta para a sala fixo mais uma vez as telas na parede. Algumas fazem lembrar os campos de carvalhos e a humidade do verde. Os cheiros que as cores me imprimem nas mãos hão-de fazer-me chorar. Só o negrume líquido da tinta da china me acordaria desse torpor.
Penso se Turner seria feliz aqui tão longe do mar. Do alto da cidade vai-se estendendo uma densa bruma. Talvez por instantes confundisse Turner e reconhecesse o smog de Londres. Ou a maresia a despontar. Talvez me confundisse a mim também. Mas não. Turner nunca por aqui passou. E esta bruma não traz o ruído de Londres nem som de gaivotas nem cheiro a mar. Ainda assim faço de conta. Afinal, sou um pouco como o verde. E uma criança tudo pode. É belíssima esta paisagem. Podia ter uma espada cravada na pedra que o bosque bem comportaria. Mas o oceano está a passar por aqui. Turner fala comigo junto aos rochedos onde as ondas morrem pacificadas. Os seus pincéis são pequenos bugalhos de carvalho. Sorvo as cores dos navios que pinta. Tacteio a linha do horizonte. Sorrio muito porque gosto de danças puras. Pergunta-me se sou feliz longe do mar – que tontice, Turner, essa questão era minha!
A minha gata, que tem por hábito roubar pequenos objectos que encontra para os deixar como oferta, acaba de chegar da garagem com um pincel número um que deposita aos meus pés. Sentada, feita estátua, ergue o olhar para mim. Como se me inquirisse ou desafiasse. Não conseguindo disfarçar um certo espanto e alguma emoção faço-lhe uma festa. Pergunto-lhe, sabendo que não terei resposta – será que Turner gostava de gatos?
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia