O problema surgiu há um ano. A 2 junho de 2019, após queixas de dor abdominal e vómitos constantes, Miguel, aluno do 11º ano da Escola Secundária Afonso de Albuquerque, na Guarda, deslocou-se ao Hospital Sousa Martins. O diagnóstico inicial era gastroenterite ou apendicite aguda, mas, depois de vários exames negativos, dejeções e regressos às urgências, foi detetada uma peritonite generalizada.
A doença – uma infeção bacteriana ou fúngica do peritoneu, uma membrana que reveste o interior da parede abdominal – foi causada pelo atraso no diagnóstico, que originou múltiplos abcessos e obrigou a uma intervenção cirúrgica de urgência. Entre operações e ambulatório, Miguel esteve dois meses internado, tendo saído do hospital apenas a 2 de julho.
A data foi tudo menos conveniente. Por esta altura a primeira fase dos exames nacionais já tinha passado e a segunda etapa das provas estava a umas escassas duas semanas de distância. As notas finais de um aluno exemplar estavam em risco de descer, o que iria prejudicar a média final dos três anos de secundário. Além disso, por só poder realizar os exames na segunda fase, o guardense de 17 anos ficou impedido de se candidatar à primeira fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior no ano seguinte, de acordo com a lei (despacho normativo nº3A/2019 de 26 de fevereiro). Miguel pretende ingressar em Engenharia Biomédica, no Instituto Superior Técnico de Lisboa, um curso cuja nota mínima de seriação (do último colocado) no ano letivo 2019/2020 foi de 18,1 valores e do qual restaram nesse ano apenas quatro vagas para a segunda fase. As chances de entrar ficaram, assim, substancialmente reduzidas devido a um problema grave de saúde.
Apesar das contrariedades, Miguel deslocou-se à escola ainda em fase de tratamento de ambulatório, levando consigo uma sutura aberta no abdómen. Fez os exames da segunda fase de Biologia e Geologia e Física e Química A e obteve nota positiva. Os resultados eram bons, mas insuficientes para o seu objetivo. As alternativas seriam a repetição dos dois exames no ano seguinte – na mesma altura em que seria avaliado a Português e Matemática A – ou tentar a época especial para subir a nota.
Legislação atual impede acesso à época especial de exames por motivos de saúde
Após apresentar as devidas justificações médicas, Ana Cariano, mãe de Miguel, viu negado o pedido para o filho aceder à época especial das provas. O Júri Nacional de Exames (JNE) disse-se «sensível à situação ocorrida», mas remeteu para a legislação, que define os alunos que podem aceder à época especial: «Praticantes desportivos de alto rendimento e seleções nacionais»,« grávidas», «mães e pais estudantes» e «militares, em regime de contrato, contrato especial ou voluntariado». Motivos de saúde não estão contemplados.
Inconformada, Ana Cariano, psicóloga do Agrupamento de Escolas de Pinhel, decidiu «escalar» a hierarquia e telefonar diretamente para o Ministério da Educação, exigindo «exercer os seus direitos de cidadania», mas a resposta remeteu novamente para o JNE. De nada serviu.
Algum tempo depois, a psicóloga lisboeta residente na Guarda deslocou-se a uma conferência da sua área onde estava a secretária de Estado da Educação, Susana Amador. «Assim que a vi fui à volta e fiz-lhe uma espera. Lá mesmo ao pé do palco!», relata Ana Cariano, que, apesar de ter conseguido conversar diretamente com a governante – que, segundo relata, se mostrou disponível para ajudar – não obteve resultados.
«Chateei-me com esta porcaria!»
«Escrevi ao Sr. Presidente da República, escrevi ao Sr.primeiro-ministro – mas não escrevi para os gabinetes, escrevi diretamente para eles! –, para a Provedoria da Justiça, [para] todos os grupos parlamentares… Tudo o que eu me lembrei que pudesse ser possível, enviei [cartas]», afirma a encarregada de educação.
Apesar da sua perseverança nenhum dos contactos deu frutos. «Chateei-me com esta porcaria!», assume Ana Cariano, que, após esgotar as hipóteses, decide avançar com uma Moção de Alteração Legislativa e respetivo pedido de audiência. «Armei-me em grande e escrevi um texto», no qual pretendia que fossem alterados a Deliberação nº 1233/2014 de 9 de junho, da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, e o Despacho Normativo nº3-A/2019, do Ministério da Educação. Na sua exposição, enviada em fevereiro de 2020, a mãe do Miguel justificava que aqueles diplomas não contemplam «os princípios da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior», previstos na Constituição, prejudicando os estudantes por motivos que lhes são inimputáveis.
«Qual não é o meu espanto quando recebo um email da Comissão Parlamentar [de Educação, Ciência, Juventude e Desporto] a dizer que a minha exposição tinha sido acolhida e que achavam que era um assunto para ser ouvido e tratado», conta agora, dizendo-se incrédula com a resposta que chegou no mês seguinte. O assunto ficou pendente por força do Estado de Emergência decretado em Portugal, mas foi retomado em maio.
Ana Cariano foi contactada e vai esta quinta-feira, dia 4 de junho, a São Bento, onde será ouvida pela referida comissão parlamentar.
«Eu sou sincera: eu sei que isto já não vai ajudar o meu filho em nada», assume, adiantando que o filho acabou por sair beneficiado com as alterações normativas das avaliações aplicadas durante a pandemia. Mas sublinha que «acho isto de tal maneira injusto para todos os jovens que decidi não desistir».
«Há tanta barreira, tanto “não”, que é difícil conseguirmos manter dentro de nós a força e o espírito para continuar a lutar», refere a encarregada de educação, que confessa ter ganho o gosto pelas lutas cívicas e comunitárias que agora fazem parte da sua vida. «Tornei-me uma refilona» e assim promete continuar.
Sofia Craveiro