“Último Acto em Lisboa”: um “thriller” que passa pela região da Guarda, no tempo da febre do volfrâmio

Escrito por Thierry Santos

“Se a investigação do crime começa e acaba na Lisboa dos anos 90 do século passado, narra-se de forma alternada a indagação sobre o assassínio de Catarina, uma adolescente loura de olhos azuis, enteada de um conhecido advogado da capital, e a vinda de um industrial alemão a Portugal, em 1941, cuja missão consiste em organizar a exportação de tungsténio para o Terceiro Reich.”

Galardoado com o “Crime Writer’s Association Golden Dagger Award”, em 1999, e com o “International Deutsche Krimi Prize”, em 2003, este romance (originalmente titulado “A Small Death in Lisbon”) do inglês Robert Wilson, autor de “thrillers” de sucesso, combina com mestria a narrativa policial e o romance histórico.
Se a investigação do crime começa e acaba na Lisboa dos anos 90 do século passado, narra-se de forma alternada a indagação sobre o assassínio de Catarina, uma adolescente loura de olhos azuis, enteada de um conhecido advogado da capital, e a vinda de um industrial alemão a Portugal, em 1941, cuja missão consiste em organizar a exportação de tungsténio para o Terceiro Reich. Neste sentido, o enredo versa sobre a história desse país oficialmente neutro que, tal como ilustra o romance “Volfrâmio”, de Aquilino Ribeiro, vendia minério a duas potências inimigas: o Reino Unido e a Alemanha. Descortina, pois, a relação dúbia de Salazar com os nazis, sobretudo quando estes últimos debandaram após a capitulação, levando com eles enormes quantidades de ouro e diamantes, via Suíça e Portugal, antes de seguirem para o Brasil. Encena, ainda, os bastidores da PIDE até Abril de 1974. Retrata, finalmente, aquele Portugal em vésperas de inaugurar a ponte Vasco da Gama, de celebrar a Expo 98 e de entrar no clube do €, vivendo ao ritmo de escândalos de que certa elite nacional dava motivo.
Com mais de 450 páginas, segmentada em 44 capítulos, e dividida em duas partes quase proporcionais, esta ficção policial é protagonizada por um inspetor da PJ inconformista, chamado Zé Coelho, que, apesar das ameaças sofridas, vai desterrar segredos de família para determinar a relação existente entre Catarina e um banco português erguido sobre ouro nazi. As peripécias por que vão passar os protagonistas desse passado histórico de várias décadas são contadas por voz omnisciente. A investigação de Zé Coelho, a desenrolar-se em poucas semanas, é narrada na primeira pessoa. Esta alternância de focalizações correspondentes a épocas distintas favorece um clima de “suspense” e reforça o sentido dos lugares onde as cenas acontecem, sentido esse revelado através das atitudes das personagens, de diálogos ritmados e da gastronomia local.
Na economia narrativa, as serranias beirãs surgem como um espaço do extremo interior, arcaico, habitado por indivíduos quase animalescos, mas onde se joga parte do desenlace da II Guerra Mundial: o indispensável volfrâmio à produção de munições, tanques e aviões. Nesse território, tal minério cresce «onde o xisto e o granito se cruz[am]». Se os ingleses dominavam o setor a nível nacional, não é menos verdade que os alemães conseguiam adquirir quantidades relevantes de concentrados, nomeadamente nas regiões da Guarda e Castelo Branco. Neste «fim de mundo rochoso», a paisagem parece, no verão, uma dependência do inferno, e, no inverno, a antecâmara de um cataclismo. Os beirões vivem em «casas de granito», sendo vistos como pessoas difíceis, porque «têm uma vida dura e fria». O agente alemão escolhe a Guarda para “quartel-general”, porque é «o coração da área do volfrâmio». Contrata um contabilista e associa-se a um volframista impiedoso. A cidade não é descrita, apenas evocada como distópica. Depois de o alemão corromper a GNR local, o minério passa a ser encaminhado pela estrada Guarda-Vilar Formoso. À medida que a mão-de-obra fugia do campo para a mineração e que as explorações informais, o contrabando e o roubo proliferavam, a Beira degenerava «numa terra de doidos». Num restaurante da Guarda, os dois sócios confraternizam com volframistas «barulhentos». Estas figuras caricatas representam a situação pontual de acumulação de riqueza à escala regional. Antes do final da guerra, a dupla abre um banco em Lisboa.
Este romance, com uma trama bem urdida, pontuada por depravação e violência, convida o leitor residente no interior a estabelecer um paralelismo entre aquela febre do volfrâmio e a presente febre do lítio. O que a literatura versada na corrida ao “ouro negro” ensina? No artigo “O tema do volfrâmio e o neorrealismo” (de 2019), a ensaísta Maria de Fátima Marinho observa seis pontos que se constituem como a matriz das narrativas do volfrâmio: «Utopia, mudança de valores, desestruturação da família, figuras paradigmáticas, más condições de trabalho e corrupção». Na contextura em análise, o leitor depara-se com as mesmas coordenadas, com exceção das “condições de trabalho”, tópico que abriria caminho para o romance social, se este texto tivesse tal vocação, o que não é o caso.
Por quem foram repartidos os ganhos da extração do volfrâmio em Portugal? Que benefícios houve para as comunidades do interior? Em que estado ficaram a paisagem e o meio ambiente depois da exploração? Será que a História do minério luso do séc. XX se irá repetir no séc. XXI?

Sobre o autor

Thierry Santos

Leave a Reply