Quando nasci, excetuando a médica e a freira que ajudaram a mãe a fazer-me chegar a este mundo, só a família e, eventualmente, a vizinhança se aperceberam da ocorrência, que a coisa também não era para mais. Nessa altura, os dígitos ainda não serviam para nos denunciar a pegada desde o ventre materno, nem havia cartão de cidadão ou de contribuinte. Passados dois ou três dias, julgo, meu pai para não juntar o registo com o batizado, marcado para daí a um mês, declarou-me civilmente viva. Bastará, portanto, esta descrição para se perceber que já nasci há tempo suficiente para não me entaramelar toda quando, numa operação stop, um polícia moderno demais para aceitar que alguém dos tempos em que eu nasci fixe a data de aniversário, me tenha atirado de C.C. em riste: «Sabe que idade tem, minha senhora?» Assim como penso ser esta mesma descrição suficiente para se perceber que nem sempre esteja com o mesmo humor com que lhe retorqui «sei, sei senhor agente». Por vezes, afivelo mesmo uma carantonha capaz de obrigar a explicar-se-me quem ousa pedir desculpa só por perguntar a “data do nascimento” com ar de quem está a ser pecaminoso ao prever uma obscenidade por resposta.
Seja por estas ou por outras, ao descobrir que vou ter que trabalhar mais um mês, antes de me poder tornar oficialmente improdutiva, fico a pensar que nem levaria a mal se, em vez de um mês, fossem uns anitos. Pensando bem, mais década, menos década, já o polícia me começava a tratar por menina e, ao rapaz da ótica, não ocorreria pedir-me desculpa por ter de perguntar a data em que nasci. Depois, com sorte, também já não ocorreria a ninguém comentar as minhas fotos de perfil em crescendos de “cada vez mais jovem”. É que, mesmo nestas imprecisões de sermos velhos para isto e novos para aquilo, continua a ser um facto irrefutável a impossibilidade de rejuvenescer. No entanto, o que agora temos de mais certo, a par da morte, é que nos comecem a acriançar ainda em idade ativa. Por este andar, mais do que a ciática e as cataratas, o que nos espera no trabalho é a desfeita de segurarem a “portinha”, em vez da porta, até acabarmos de a transpor, estarem sempre a lembrar-nos que temos de escrever o “textinho”, em vez do texto. Ainda havemos de chegar ao cúmulo de suspenderem os chistes à nossa entrada e de se desfazerem em gargalhadas à nossa saída. Pois, por muito bem-humoradas (os homens não costumam ser acometidos por estas coisas) que sejamos, na dúvida, ninguém se atreverá a rir connosco.
A idade, mesmo sem posto, servirá assim para confirmar na pele os preconceitos de uma sociedade que, quanto mais enaltece o Photoshop, menos pondera os riscos do assédio geracional. Por mim, já decidi que dos 65 aos 67,777 anos, retorquirei, a qualquer eventual apoquentador, da mesma maneira que ao meu cão quando me fita fixamente: «Queres ir à rua, é?» Ora, se aumentassem logo a idade da reforma para os 75 ou, sei lá, 80, só já teria de me preocupar com estas questões depois dos oitenta e, pelo menos antes dos setenta, não precisava de ser mal-educada para ninguém.