Tinne

“Mas prefiro que os economistas continuem a falar na língua dothraki entre si, e nos poupem a estatísticas agoirentas.”

1. O tema do ranking das escolas tem mobilizado os sindicatos da opinião nos fóruns, colunas de opinião e redes sociais. Por muito que puxe pela cabeça, não consigo encontrar razão para tal. Ao fim ao cabo, para que servem as escolas secundárias? Em primeira linha, preparar os jovens para lidar com a realidade, decifrando-a. Depois, dar-lhes motivos para duvidar dela. Em seguida, instrumentos para actuar sobre ela com algum conforto. Por último, num ambiente controlado, esperar que, em alguns, um elemento diferenciador e próprio irrompa, como uma semente que germina. No seguimento, cada um faz o seu caminho. Tudo o resto, pouco interessa.
A polémica acerca dos músicos que irão participar na Festa do Avante deste ano não é inócua. Vamos por partes. A natureza totalitária do PCP não nasceu com a invasão da Ucrânia. Os comunistas sempre apoiaram regimes despóticos e sangrentos. E isso nunca impediu que muitos músicos lá fossem tocar. Era até prestigiante. O Abrunhosa esteve lá. Muita gente, que de comunista não tinha nada, não falhava uma Festa. Eu próprio, confesso. Mas apesar das condições propícias, nunca contraí o vírus do populismo igualitário. O homem das bifanas, ou dos cafés, diria o mesmo. Este ano, é diferente. O apoio descarado do PCP ao regime putinesco fez dele um local pouco recomendável. E não tenhamos ilusões. A Festa do Avante é um evento político. Um comício festivo. Foi esse, aliás, o argumento que convenceu a DGS a autorizar a festa em 2020, em pleno confinamento. E é também uma forma de o partido se financiar, não pagando sequer IVA. O resto, é pão e circenses. Obviamente, os músicos nacionais que lá vão este ano não ignoram estes factos. Podiam perfeitamente abster-se de justificar a sua presença, com argumentos ridículos e rebuscados. Escudando-se, com toda a legitimidade, no profissionalismo e no cachet. Mesmo sabendo-se que, em rigor, a sua participação não é neutra. Tal como não seria se fossem tocar a um evento organizado pelo Chega. Mas ninguém tem o direito de os julgar, ou colocar numa lista negra. Isso só aconteceria nos regimes que o PCP apoia. Nestas coisas, ninguém é ingénuo. E não esperem eles que nós o sejamos.
2. O casal Zelensky posou para a revista “Vogue”, pela mão (e lente) da conceituada fotógrafa Annie Leibovitz. Olena foi capa desse número. Foi o que bastou para uma tempestade nos fóruns e redes sociais. Cujos contornos não são lineares. Os mais críticos são os apoiantes, declarados ou envergonhados, do regime russo e da agressão à Ucrânia. Que agora vêm a terreiro apontar o «narcisismo» e o «exibicionismo» dos Zelensky, nas costas do seu povo sofredor! Confesso a minha comoção diante deste súbito desvelo de putinistas para com a luta e os sentimentos do povo ucraniano. Sobretudo, depois de os russos o querer “libertar”, por via do genocídio e da barbárie. Mas enfim, passemos à frente. Para além dessa faixa de ideólogos cripto soviéticos, muitos caíram em cima da «insensibilidade» e do «pecado da vaidade», cometidos pelo casal. É a esses que se dirige este “post”. Porque não perceberam o que está nas entrelinhas deste entreacto aparentemente inócuo. Zelensky quer conquistar as boas graças do Ocidente. Para isso, sabe que tem de jogar segundo as suas regras. O marketing e a publicidade são os pilares dessa ofensiva. Capítulos de uma estratégia de comunicação mais vasta. A frivolidade tornou-se um elemento essencial da cultura de massas, após os anos 60, graças aos modelos do mundo pop. Zelensky sabe muito bem onde dispor as suas peças. Por outro lado, tem outra coisa a seu favor. Foi actor. Conhece a importância da dimensão performativa no arquétipo individualista ocidental. Inseparável da modernidade. Foi precisamente esse o tabuleiro que escolheu para jogar. E será por causa deste tributo à frivolidade que Zelensky se tornou mais negligente na defesa do seu povo e da sua pátria? Desenganem-se. Tudo não passou de uma incursão táctica, uma operação de charme bem urdida, numa guerra que também se trava nas revistas de temas mundanos.
3. Tenho uma relação complicada com a Economia. Na Faculdade, foi um castigo “fazer” as disciplinas dessa área. Sempre me soou a uma cabala numérica de que nenhum mortal pode fugir. Embora a lei das vantagens comparadas, de Ricardo – inspirada no tratado de Methuen, ou dos Panos e Vinhos (1703), entre Portugal e a Inglaterra – me soasse a justiça poética. Os economistas eram personagens esquivos, sombrios, mexendo caldeirões com poções várias. Das quais não escaparíamos sem provar uma delas. Eram uma mistura de druidas tecnocratas e demiurgos com gráficos. Aterrador. Ainda hoje, para ler um artigo sobre economia, faço um esforço enorme para decifrar tão densa novilíngua, com medo de, no final, pagar uma taxa ou ser sovado com uma estagflação no lombo. Bem sei que isto parece pueril, num mundo onde, dizem, a economia manda mais alto. Mas prefiro que os economistas continuem a falar na língua dothraki entre si, e nos poupem a estatísticas agoirentas.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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