1. O Reino Unido colocou o seu aliado setecentenário no index. E fez bem. Eles lá sabem os números certos da COVID em terras lusitanas. Mas aposto que Costa, um mitómano da mesma farinha de Sócrates, mas não tão imprudente, já tomou de assalto a linha telefónica do enfermeiro Luís.
Recordam-se do enfermeiro Luís Pitarma? Sim, aquele que livrou Boris Johnson de todo o mal, na sua convalescença, seguindo-se um louvor público que comoveu a Pátria. Imaginemos o teor da conversa:
AC: Então ó Luís! Côl é a tua espxalidade? É verdad que fostes praí por cósa do meu anteçor?
LP: Está enganado, senhor Primeiro Ministro. Fui porque me apeteceu e, como sabe, ainda não voltei, apesar de o ter ouvido anunciar que o país parece o paraíso na Terra.
AC: Olha que não, Luís! Posso pdir-te um favor? Fala com o teu amigo Boris. Ped-lhe que tire Portugal da lista negra, salvo seja! Diz-lhe que pode fazer férias quando quiser num resort do Algarve à sua escolha. Ele, a família, a parentela, os amigalhaços da faculdade e, se for o caso, as amantes. Faz-lhe notar que é costume em Portugal dar tudo pela família quando se está no poder.
LP: Vou surpreendê-lo. Já falei com ele. Manda dizer que só aceita se o PM souber quem foi ao funeral do pai do Keynes. Está numa nota de rodapé do manual de Economia Política do Prof. Martinez, que o senhor PM foi obrigado a ler quando era aluno da FDL.
AC: Agoré caquele cabeça de piaçá me tramou! Vou já ligar ó Tribunal Conchional, ó Cabrita e ó Palácio das Nechidades…
2. Sou um leitor voraz de manuais de instruções. Creio que desenvolvem a agilidade mental. Mas têm outra utilidade, digamos, inconspícua. Sendo, em primeira mão, um conjunto de procedimentos de ordem técnica, ou operativa, podemos ir mais longe. Estender o conceito àquelas obras cuja única razão de ser é a prescrição moral. E aí incluiríamos os códices religiosos que moldam a vida de milhões e milhões de pessoas: a Bíblia, o Corão, a Torah, os Sutras. Afinal o que são senão manuais de instruções? Por outro lado, ainda que contenham hipérboles e alegorias, nesses manuais não há digressão, nem ironia, nem descrições apuradas, nem pormenores indiscretos, nem tramas imprevisíveis. Isso são atributos do romance. Pelo menos, desde Sterne e Cervantes. (no Oriente desde o “Romance do Genji”, de Murasaki Shikibu, 500 anos antes). Por outro lado, sendo prescrições de condutas, de aptidões específicas, não dispensam o exemplo. Sendo utilizado, quase sempre, o método demonstrativo. Mas enquanto nos manuais convencionais o que interessa é resolver “aquele” problema, nos religiosos é preciso provar o sagrado, incentivar pelo exemplo, criar uma narrativa com imagens poderosas, fundar a realidade com a palavra. O que nos leva a concluir que a hierofania não dispensa a poesia. Mas a poesia pode bem dispensar aquela.
3. Vivemos uma silly season envergonhada. Ninguém diz que vai de férias. Ninguém diz o contrário. A indústria do turismo adaptou-se ao cliente tuga. Resmas de jovens comunitários acotovelam-se em bebedeiras suicidárias no Algarve. É a sua forma de ser “irreverente”. Paira um desejo inconfessado de que as vizinhas boas se exponham ao sol nas suas varandas. Não há férias nem deixa de haver. Antes pelo contrário. Como diria um piadista popularucho. À superfície, ninguém se move. Mas as praias parecem comboios apinhados na Índia, com todos a fingirem que não estão lá. Eis um Verão trágico-cómico. Clandestino. À espera do Sr. Hulot.
4. A linguagem gestual dos políticos e aspirantes a políticos é deveras sugestiva. É muito comum aparecerem retratados com os braços cruzados. Não completamente, mas com alguma amplitude, mantendo os braços paralelos e as mãos segurando os cotovelos. Sugestão dos consultores de imagem? Mimetismo? Não se sabe. Qual a mensagem transmitida? Vejamos. A postura dos braços cruzados cria conforto e distanciamento. É um sinal defensivo. Muitas vezes associado ao frio. Também pode ser encarado como tentativa de autocontrolo diante de uma contrariedade. Mas é seguramente uma manifestação de poder, domínio da situação, em que a caixa torácica parece maior e os cotovelos para fora compõem uma pose afirmativa. A insegurança e o narcisismo são os motores silenciosos da postura. No caso dos políticos, mal começam a discursar, os braços abrem-se e as mãos, paralelas ao corpo e com as palmas para dentro, incutem confiança, determinação, hubris. Nos EUA, os políticos usam um recurso cénico que não chegou à Europa. Quando chegam à tribuna onde vão discursar, esboçam cumprimentos personalizados, saudando este e aquele como se fossem amigos chegados. O expediente é seguro e eficiente. Pois quebra o gelo e incute no público a ideia de que o orador se dirige a um grupo de amigos e não a uma assembleia anónima. Em rigor, os políticos, mesmo quando metem os pés pelas mãos, só conhecem um local seguro onde as esconder: nos bolsos dos contribuintes.
5. Estar diante de quem estamos perto tão completamente como se fossem estranhos. Desligar do entorno, mas implicar o entorno. Ouvir com delicadeza. Rir como se fosse a primeira vez. Imaginar sem fantasiar. Recriar cada perplexidade como se fosse nossa. Dar sem medo e sem medida. Deixar que os olhos cantem e a música instale as figuras do retrato. Adormecer.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia