Schiaparelli, os canais de Marte e os marcianos

Escrito por António Costa

“Também não existem marcianos, mas durante muito tempo pensou-se que pudesse haver, pelo menos, vida vegetal em Marte até se descobrir que nem sequer esta lá existe.”

No Verão de 1877, Marte brilhava no céu e encontrava-se numa posição particularmente favorável para ser observado. Naquela época, a estrutura superficial do planeta vermelho era pouco conhecida. Giovanni Virginio Schiaparelli, diretor do Observatório de Brera, em Milão, decidiu dirigir para o planeta o seu telescópio refrator “Merz”, de 218 mm de abertura, então um instrumento de vanguarda.
O astrónomo encetou assim uma série de observações que o levaram a traçar mapas da superfície de Marte, onde registou a presença de finas e escuras linhas retas que se cruzavam segundo diferentes ângulos, formando uma espécie de rede. Algumas destas estruturas tinham um comprimento de milhares de quilómetros. Não importa a sua natureza: eram decerto estruturas de grandes dimensões para serem visíveis de outro planeta (e com um telescópio da segunda metade do século XIX). A estas estruturas Schiaparelli chamou “canali”: os canais de Marte. Os canais pareciam mudar com o tempo e até ramificar-se. Supôs que pudessem ser rios pelos quais a água se teria distribuído pela árida paisagem marciana, mas, enquanto cientista, manteve uma atitude prudente sobre a natureza dos canais.
Nos artigos de divulgação que publicou sobre as suas observações do planeta vermelho foi mais ousado e imaginou que poderia tratar-se de uma rede de canais artificiais que uma hipotética civilização extraterrestre – os marcianos – usava para irrigar o solo do seu planeta. Se esta civilização extraterrestre existisse devia ter evoluído do ponto de vista tecnológico, pois fora capaz de construir artefactos que eram visíveis da superfície de outro planeta. Mas Schiaparelli imaginou tudo isto e nunca negou: a sua existência continuava a ser apenas uma hipótese.
O astrónomo também divagou sobre sociologia extraterrestre, especulando sobre a eventual estrutura política de uma sociedade marciana, embora sempre num contexto hipotético e de autoironia. Mesmo assim, a descoberta dos canais causou sensação. As coisas complicaram-se quando o termo “canais” foi traduzido de maneira errónea para inglês. Em vez do mais neutral e correto “channel”, que se refere a um canal que pode ser natural, como o canal da Mancha, foi traduzido como “canal” que significa canal de origem artificial, construído por alguém, como o Canal do Suez. Consequentemente, difundiu-se a ideia de que alguém tinha construído os canais e este alguém só podiam ser os marcianos!
A ideia dos marcianos teve um grande impacto na cultura popular. A imagem de um planeta Marte árido, onde esta civilização teria construído canais para combater a seca, ganhou muitos adeptos. O romance “A Guerra dos Mundos”, de H.G. Wells, publicado em 1897, foi escrito nesse contexto cultural. Mesmo sem mencionar os canais, Wells imaginou uma civilização marciana que abandona o planeta cujos recursos se estão a esgotar para invadir a Terra. Por fim, as bactérias da Terra liquidam os marcianos. Ainda que surjam em muitas outras obras de ficção científica, que canais são estes? Na realidade não existem. Isso foi demonstrado de maneira inequívoca pelas primeiras sondas espaciais que chegaram ao planeta vermelho, embora tal já fosse conhecido há muito tempo, entre o final do século XIX e o princípio do século XX. Com os melhores telescópios, seria natural que os canais fossem mais facilmente visíveis, mas a verdade é que não se viam: não passavam de ilusão de ótica. Não é que Schiaparelli e os seus contemporâneos não observassem como cuidado, simplesmente trabalhavam no limite das possibilidades dos seus telescópios e viram linhas retas onde havia apenas pontos dispostos ao acaso. Também não existem marcianos, mas durante muito tempo pensou-se que pudesse haver, pelo menos, vida vegetal em Marte até se descobrir que nem sequer esta lá existe. Porém, a ideia de vida não foi abandonada por completo, embora hoje nos limitemos a procurar vida microbiana.

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António Costa

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