Ruis*

“Alguém me tentou persuadir, durante um par de horas, sobre a justeza das razões pretéritas e actuais para a Rússia ter invadido a Ucrânia e pretender acabar com a sua soberania. Parecia que estava a ouvir um disco riscado da propaganda filo russa.”

1. Numa Stand Up Comedy disponível na Netflix, uma dupla de comediantes actua num bar icónico da cena nova-iorquina. Entre a assistência, pontuam nomes famosos: Bruce Willis (que deu um ar da sua graça com uma harmónica) e Paul Rudd (que provocou orgasmos múltiplos na assistência feminina da primeira fila). A certa altura, é convidado para o palco um veterano da guerra do Afeganistão, vítima de uma bomba. Como resultado, o ex-militar ficou com o rosto desfigurado e as mãos sem dedos. Mesmo assim, seguiu a sua vida, apresentando-se como um empresário bem-sucedido. Mas os cinco minutos que esteve em palco, numa disputa de “punch line” com os dois comediantes, foi do melhor que já vi no género. Um deles entrou a matar, dizendo-lhe que, se fosse herói de filmes de terror, deixaria o Freddy Kruger sem emprego. O veterano respondeu à altura, comparando-o a um dos bonecos usados nos tribunais americanos para as crianças molestadas descreverem as agressões. O outro comediante perguntou-lhe se, caso fosse super-herói, gostaria de ser chamado de “Tocha humana 2”. Ao que este respondeu que preferia ser herói de filmes porno, com o nick “chouriço assado”. A troca de galhardetes culminou com o convidado a ser desafiado que talvez tivesse salvo a mão direita, se estivesse a “tocar uma pívia”, quando rebentou a bomba. Dando este a estocada final, lembrando que, devido ao ar andrajoso dos seus interlocutores, ao pé dos dois parecia o George Clooney. Conto isto porquê? Em Portugal, um “happening” como este seria impossível. Uma vítima de guerra tem direito à compaixão, como em todo o lado. Mas com a originalidade do abraço regulamentar de Marcelo, de um paternalismo não dissimulado, de uma piedade muitas vezes hipócrita. A sua visibilidade na esfera pública é confinada ao cerimonial militar ou aos programas televisivos do Goucha e similares. Impensável ser olhado na sua humanidade intocada. Devolver-lhe essa humanidade, sem condescendência. Brincar com coisas sérias. Convocar o humor como nivelador supremo da nossa insignificância.
2. Alguém me tentou persuadir, durante um par de horas, sobre a justeza das razões pretéritas e actuais para a Rússia ter invadido a Ucrânia e pretender acabar com a sua soberania. Parecia que estava a ouvir um disco riscado da propaganda filo russa. Nem faltou a proverbial alusão a esta «extremidade da Eurásia com fronteiras sem sentido». Por norma, nestas situações, nem sequer contesto. Limito-me a declinar o convite, tentando, discretamente, descortinar o que pode levar pessoas inteligentes a acreditar nas narrativas alucinadas de um poder despótico. Ao mesmo tempo, testar os limites da liberdade de expressão. Rejubilando, também pelo meu interlocutor, por ela ser possível cá e impossível lá.
3. Os totalitarismos sempre usaram as crianças como arautos de um tempo novo. Um tempo que apaga o anterior. As crianças sorridentes abraçando o líder, ou marchando num acampamento de Verão, ou cantando ao sol, ou denunciando os vizinhos e as famílias, como na revolução cultural chinesa. A iconografia exemplar da marcha da humanidade para uma jovialidade apolínea, despida da razão, do passado e da sensatez. A criança que grita para o mundo lhe devolver tudo é, no fundo, o culminar de uma reivindicação ególatra nascida nos anos sessenta. Um narcisismo acomodado em berço de ouro e que não conhece limites.
4. Coloco cada palavra na mesma luz e na mesma tonalidade de cinzento. Uma tonalidade algures entre a cor de um velho tapume e a cor de uma nuvem baixa. A diversidade é o meio onde cintila o meu espírito. A economia profundamente humana onde descrevo os meus personagens. Suspensos. Hesitantes. Amantes do jogo. Prisioneiros da cor do pormenor. Da vida derramada como aguarela. Onde os faço banhar numa bruma verbal delicadamente irisada. Seres encantadores e ineficazes. Criaturas bizantinas e patéticas. Que vão desbaratando uma existência provinciana. Encarcerados numa bruma de sonhos utópicos. Sabendo reconhecer perfeitamente o que vale a pena ser vivido. Mas atolando-se na lama de uma existência monótona. Idealistas inúteis. Sedutores por tédio. Heróis detentores de uma bela verdade humana. Fardo esse que não podem carregar nem evitar carregar. São personagens que tropeçam. Que tropeçam porque olham para as estrelas. Enquanto caminham. Que podiam sonhar, mas não governar. Que perdem todas as oportunidades. Que se furtam a qualquer acção. Que passam noites em claro. Concebendo mundos que não podem construir. São os Davids franzinos numa era de Golias rubicundos. São aqueles que nos podem resgatar. Sem condições. São eles os habitantes das paisagens desoladas. Dos salgueiros mortos nas bermas das estradas lamacentas. Dos corvos cinzentos, dilacerando os céus cinzentos com as suas asas cinzentas. Do vapor de alguma lembrança inesperada, emanando subitamente de uma banalíssima esquina da rua. Da penumbra patética. Da fraqueza encantadora. De todo um mundo cor de cinza, cor de rola. De partidas adiadas e regressos não anunciados. É deles que eu me nutro.

* No calendário vegetal celta, significa “sabugueiro”
** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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