Ruis*

1. O 25 de Novembro é uma data que a esquerda radical ignora, com boas razões para tal. E faz o PS assobiar para o lado, pois torna claro que o seu alinhamento ideológico actual renega a sua própria história. Mas o pior é a retórica das forças à direita do PS. Que atribuíram ao 25 de Novembro um carácter fundacional. É altura de pôr água na fervura. E só os contributos da investigação histórica poderão ajudar a separar a verdade do mito. É verdade que o 25 de Novembro pôs fim à deriva leninista, ancorada numa facção do MFA, ao serviço do PCP, e no COPCON de Otelo, instrumento da extrema esquerda. Mas nem por isso erradicou os condicionalismos estruturais ao funcionamento regular de um estado de direito democrático. Como bem lembrou o jornalista Miguel Pinheiro, num artigo recente do “Observador”, graças ao 25 de Novembro, Portugal passou de uma «democracia sitiada» para uma «democracia tutelada». Foi um «alívio», mas não uma «libertação». Na verdade, o PCP manteve os seus feudos e zonas de influência; o 2° pacto MFA /Partidos condicionou fortemente os deputados constituintes, como veio a demonstrar o forte pendor socializante da Constituição; o Conselho da Revolução supervisionava o funcionamento do sistema político, incluindo os programas de governo e a própria acção executiva; a sociedade civil estava sob uma vigilância castrense de inspiração estatista e corporativa. Efectivamente, só com as revisões constitucionais de 1982 e 1989 – a primeira pôs fim ao Conselho da Revolução e criou o Tribunal Constitucional, a segunda libertou a economia, reverteu as nacionalizações e colocou a iniciativa privada em pé de igualdade com o sector público – o país se libertou de um jugo militar, com sabor terceiro mundista.

2. No início, o Black Friday, enquanto campanha promocional, durava um dia, no máximo dois. Sendo essa data universal. Depois, foi-se estendendo por vários dias, ou mesmo semanas. E cada empresa foi fixando as suas datas. Seja como for, as políticas de preços no mercado, incluindo campanhas de descontos, não nascem por acaso. Não há coincidências de carácter filantrópico. Neste caso, há um factor fundamental para a concertação: a maior disponibilidade económica dos consumidores, graças ao subsídio de natal acabadinho de receber. Em resumo, com mais dinheiro nos bolsos, os consumidores estão psicologicamente motivados a adquirir produtos a preços convidativos, que de outra forma não comprariam. O alvoroço promocional faz o resto. Neste período, costumo fazer um exercício que, à falta de melhor, chamaria de despojamento zen. Consta do seguinte. Entro numa superfície comercial apelativa. Sinalizo uma série de artigos para comprar. Depois da soma, vem a subtração. Vou descartando essas escolhas, uma a uma, sem piedade nem misericórdia. Até que o inevitável acontece: saio da loja tão leve como entrei. Talvez até mais.

3. A mobilidade social precisa de estímulos. De mecanismos que reforcem o prestígio de certas actividades e estatutos. Que recomponham uma estratificação social baseada em factores complexos, de acordo com a classificação de Durkheim. Algo que escapa à visão simplista do marxismo de uma estratificação em classes em função da apropriação dos meios de produção. Só que essa mobilidade não é linear, nem vertical ou unidimensional. Uma sociedade plural e aberta requer o esbatimento dos factores ideológicos que a podem corroer, como a desvalorização de certos trabalhos, sectores, profissões, grupos, ou geografias, em função do preconceito, da arrogância e do fechamento em castas. Uma solução para reforçar uma mobilidade horizontal, operativa, despojada, enriquecedora, seria a seguinte: poderem os que exercem actividades mais qualificadas e complexas trabalhar de forma sazonal em actividades mais simples, mais exigentes fisicamente, de preferência ao ar livre, máxime no sector da agricultura. E vice-versa. Seria uma forma de fazer descansar a mente enquanto o corpo faz a sua parte. De todos aprenderem a dar valor ao que muitas vezes desprezam ou ignoram. Aqui fica a dica para um programa eleitoral de um partido, daqui a vinte anos.

4. Faça! Compre! Adira! Leia! Evite! Vá! Sorria! Ame! Invista! Concorra! Participe! Não é só na linguagem publicitária e política que abundam as interjeições. Seja qual for o meio onde a mensagem é difundida. Nas redes sociais e media em geral, o discurso impositivo está omnipresente, embora camuflado. As interjeições são o subtexto da vaidade. Tal como a vaidade resulta da autoilusão. Tal como a autoilusão resulta de um conhecimento amputado da consciência da transitoriedade.

* No calendário vegetal celta, significa “sabugueiro”

** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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