Na rua, a manhã deixava-se levar por bátegas de fim de Verão que escavavam os mil e uns pequenos riachos em que nos encharcámos até aos joelhos desde o lugar em que estacionáramos o carro até à porta da repartição onde, desde há longas semanas, tentávamos que nos resolvessem o assunto plasmado nuns quantos papéis. Lá dentro, a funcionária que nos atendia parecia sempre mais preocupada com a densidade do espírito de má vontade que aspergia sobre nós do que com a nossa manifesta vontade de concluir o processo que ali nos levara. A cada “falta isto, falta aquilo” seu, lá íamos respondendo com os “está aqui” nossos. Mas como ninguém é de ferro, o tom acintoso com que nos devolveu a última questão, consubstanciada com a chuva acumulada nas nossas sandálias, fez-nos exigir que autoridade maior do que a dela viesse dirimir episódio tão bizarro como aquele de estarmos a ensinar o padre nosso ao padre e o padre a não querer saber. Que não, o chefe não estava e, à semelhança do resto, também não parecia querer saber sobre a altura em que estaria ou, pelo menos, não nos quis dizer. Os vinte minutos que aquela conversa surda levava caíram-nos em cima com o peso de dois meses a andar, literalmente, aos papéis. Na impossibilidade de assaltar qualquer serviço e resolver pelas próprias mãos o assunto que assim se arrastava entre funcionários e funcionamentos públicos variados, decidimo-nos por ir almoçar e esperar que depois disso fôssemos melhor atendidos.
A esperança de que à tarde, por um qualquer milagre, a funcionária deixasse de continuar a aspergir-nos com o seu mau humor foi ultrapassada pela simpatia com que, dessa vez, fomos recebidos por uma sua colega. Que sim. Com os mesmos papéis que da parte da manhã apresentáramos à colega fez o registo pretendido e encerrou o processo principiado dois ou três meses antes. O que fez com que, ao contrário do que seria suposto, saíssemos dali mais desanimados do que das vezes anteriores. Afinal, nesta vida, ser-se bem-sucedido pode bem depender mais da vontade alheia do que da de cada um. Precisássemos nós do registo para ganhar a vida e teríamos morrido à fome. Fosse necessário apresentar o registo à justiça e estaríamos presos. Sem ser tidos nem havidos, ver-nos-íamos obrigados a assumir uma culpa que nunca fora nossa, mas sim de uma funcionária pública que, de cada vez que nos atendia, sempre se dera apenas ao trabalho de, rápida e agilmente, nos retirar da frente do seu balcão ao invés de fazer aquilo por que recebe.
Percebendo que nestes casos reclamar é, acima de tudo, um exercício de cidadania, ocorreu-nos o que até então, por distração ou outras premências, não nos tinha passado pela cabeça: em nome de futuros atendimentos, próprios ou alheios, exporíamos no livro de reclamações a exaustiva deambulação entre serviços, à cata de papeis inexistentes, inúteis ou desnecessários, a que o atendimento a que aquela funcionária, de maus humores e piores desempenhos, escusada e prolongadamente nos expusera.
Quando sentimos que tudo o que nos resta é reclamar, reclamemos
“Percebendo que nestes casos reclamar é, acima de tudo, um exercício de cidadania, ocorreu-nos o que até então, por distração ou outras premências, não nos tinha passado pela cabeça”