Jorge Margarido lançou há semanas, em cuidada edição de autor, o seu novo livro de ficção com o metafórico título “Os Gatos Morrem Longe”, a que acrescentou o subtítulo “o Padre, o Nu e o Mal”, indiciando tais personificações de temas uma narrativa alegórica.
Quem são estas três personagens sem nome?
O padre fez-se ao caminho do mundo qual peregrino, o Nu interpreta um sujeito com ideações suicidas e o Mal encarna um assassino a soldo. Por opção ou por condição, os três perfilam-se como indivíduos solitários, desajustados da atual sociedade portuguesa, vista aqui como uma sociedade mergulhada na corrupção endémica, no consumismo alienante, no espetáculo mediático e na indiferença civil.
A cada uma destas figuras coloca-se a questão do sentido da vida. Pergunta-se o Nu – valerá a pena viver, sem vontade, como um homem insignificante? Interroga-se o Mal – será suficientemente gratificante continuar a viver como um monstro invisível sem ter passado pela experiência de uma absolviçãozinha? Questiona-se o Padre – e se morresse como um homem coerente e corajoso depois de enfrentar o Diabo?
O leitor não pode ficar indiferente a estas personagens, distanciando-se ou aproximando-se delas consoante a situação evocada ou a cena que estão a protagonizar. No fundo, o leitor bem sabe que de peregrino em busca de fé, de mau génio e de louco manso, todos temos um pouco e, por vezes, tanto!
Na sua estrutura formal, o romance apresenta-se como uma narrativa curta, porém densa, composta por dez capítulos e um Prólogo. A cada protagonista é dedicado três capítulos e segmentos do último. Narram-se as histórias das suas vidas em episódios entrecruzados. Perpassam nelas o enfado da vida, a melancolia do envelhecer e o fascínio pela morte. O último capítulo, o mais extenso, é o momento para onde tudo converge, culminando num clímax tão breve quanto dramático. No excipit da narrativa assiste-se a uma cena que funciona como uma gradação descendente e que vem repor alguma harmonização com os desacertos da humanidade. Com esse último enunciado, é como se o narrador lançasse uma ponte entre a crua realidade e a função retemperadora da ficção.
O espaço privilegiado do romance situa-se no litoral português, designadamente Costa da Caparica, Lisboa e Alcobaça. A Fonte da Telha e a Praia da Adiça constituem os principais cenários desta trama. A imagem marítima tem aqui valor simbólico. Entre a dúvida e a decisão, o mar, na sua ambivalência, leva tanto ao bem como ao mal, sugere ao mesmo tempo morte e renascimento. À beira-mar, o Padre, que também representa a busca de fé, encontrará a força que nunca suspeitara possuir; o Mal, conduzido pela superstição, será surpreendido por um gesto tão imprevisível como eficaz; o Nu, alter-ego do saber científico, chegará à conclusão de que, afinal, não vale a pena forçar o destino. Ao deparar-se com a cena final, o leitor elaborará conjeturas e investirá nelas as suas próprias emoções e interpretações.
Assim é a arte literária de Margarido, que se estriba não só na engenhosa mecânica que engrena as ações narradas até ao inesperado desenlace, mas também no trabalho que faz com a linguagem, a qual cativa o leitor pela provocação e pela subtileza de um estilo assente quer em imagens sugestivas, com enfoque em pormenores, quer num vocabulário eficazmente comunicativo.
Nesta proposta narrativa, com inegável valor literário por sustentar-se tanto num jogo de decifração de sentidos ocultos no texto como no descritivismo de falas, de tipos sociais e dos ambientes representados, Jorge Margarido instaura uma bem conseguida construção alegórica configurada numa escrita que revela não somente a sua visão pessoal do mundo, problematizando-o, como complexifica o estatuto do narrador, incorporando neste o Autor e as personagens. Entre o texto e o subtexto, o leitor confrontar-se-á a possíveis leituras das situações narradas que servem a um questionamento do significado da vida humana, em geral, e do lugar do Homem na sociedade contemporânea, em particular.
Dir-se-á que o final é tragicamente irónico, mas este romance – que discursa também sobre o prazer de ler romances – constitui-se, na sua essência, como um sarcástico divertimento do Autor em tempos tristes.
Quando os gatos morrem longe, questionam-se os homens
“Nesta proposta narrativa, com inegável valor literário por sustentar-se tanto num jogo de decifração de sentidos ocultos no texto como no descritivismo de falas, de tipos sociais e dos ambientes representados, Jorge Margarido instaura uma bem conseguida construção alegórica configurada numa escrita que revela não somente a sua visão pessoal do mundo, problematizando-o, como complexifica o estatuto do narrador, incorporando neste o Autor e as personagens.”