Passados quarenta anos, volto a ler este romance, de Vergílio Ferreira, saído em 1983. Já não sou aquele rapaz de 18 anos que não sabia o que fazer da vida e que tinha acabado de comprar o livro – já na sua segunda edição –, na Papelaria Casimiro, em 1984.
Nunca me esqueceu esse narrador-personagem chamado Paulo, um diretor de biblioteca aposentado e só, refratário à evolução do mundo. Faz o balanço da vida, enquanto se reapropria da casa de infância na aldeia com varanda e vista, de um lado, para a montanha e, de outro, para «aldeias perdidas no horizonte». Deambula por todas as divisões, sobe, desce, abre portas e janelas, areja a casa, fuma um cigarro, depara-se com objetos que lhe dizem muito e lhe fazem dizer ainda mais, numa «tarde ardente de agosto». Num monólogo ininterrupto, divido em XXXVII capítulos, Paulo romanceia a própria existência e o conhecimento que tem da vida. Não há enredo, apenas uma estória de vida comum. É um homem em diálogo com os «seus» ausentes. Desbobina, pelo viés da memória e do devaneio, como quem recolhe os estilhaços de uma existência e se reconstrói novamente, a vida entre o que foi e o que gostaria que tivesse sido ou venha a ser, para que os laços de afeto entre os pais e a descendência – trama de sentimentos mal resolvidos – fossem um pouco menos frágeis.
Nunca me esqueceu Penalva, essa Guarda que V. Ferreira mitificou, lugar encantado que o romance encena descrita como «cidade quase deserta, imóvel na eternidade», associada ao frio, à neve e à ficção de um grande amor de juventude sublimado pela imaginação para que a vida faça sentido (como a mim me aconteceu aí…). Nessa cidade de granito, permanecem o motivo de uma melodia «pobre», cuja origem se desconhece, mas «cheia de memória», ali para os lados da rua da Torre e da Sé, figuras boçais e estranhas, com o seu quê de absurdo, as longas conversas entre amigos sobre arte e política, assim como a recordação da prostituta que Paulo visitou na antiga rua do Poço do Gado, em São Vicente.
Naturalmente, a Guarda que descobri pelo olhar vergiliano era diferente daquela que conheci. Havia, decerto, as mesmas casas velhas e frias, um ambiente propício para se fazer boas amizades que estimulavam a liberdade interior e a consciência do mundo. Mas a Guarda da minha juventude, tinha cafés convidativos, e muitos estudantes de ambos os sexos a circularem pelo centro. A vida sexual da rapaziada já não era iniciada com a empregada de casa ou uma prostituta, mas através da atração amorosa, numa relação de igual para igual. Ainda assim dava para entender – e continuo a entender – esse sentimento de solidão, de tempo primordial e visão espectral que V. Ferreira empresta à representação da Guarda.
Deste livro ressalto a tensão entre o jovem leitor que já fui e o leitor maduro que agora sou, apto a refazer o caminho que o próprio romance percorre entre a juventude e o envelhecimento, e reconhecer, nesse processo de mudança e desgaste que a vida é, o que o ser humano tem de imutável, de eterno. Revejo-me naquele jovem leitor de “Para sempre”, a pensar no que o futuro lhe iria reservar e se, no fim de contas, como acontece com Paulo, iria sobrar um jogo de memórias pessoais, qual baralho de cartas, sobre as quais iria meditar e fantasiar à medida que as virasse para cima, como numa partida de Paciência. Iria um dia ter condições para se sentir realizado?
Algo desse jovem leitor permaneceu em mim para lá da mudança e rio-me dele, como quem ri de si mesmo, pois o lugar onde existo vai-se aproximando do inevitável. Tal como Paulo, vivi, amei, criei, sofri, cumpri, mas ainda tenho algum caminho a percorrer! Uma vida irrepetível, «maravilhosa» e «estúpida», à semelhança de qualquer vida humana, que tenho de viver por mim mesmo. Não basta ter sido trânsfuga do meio e do «espírito do tempo» de onde provenho, importa perguntar: quem sou eu agora? Que escolhas devo fazer e o que fazer comigo mesmo? Como observa Paulo: «É-se homem sobretudo pelo que se esquece».
Neste romance-poema de ideias que falam às emoções, Paulo lança um olhar irónico, nostálgico e lúcido sobre o mundo e a própria vida. Convoca o restrito círculo da família e amigos estreitos, que são de facto quem importa, por terem tomado parte na construção do seu «eu»: a evocação desse núcleo torna-se ora elegia para a mãe enlouquecida e as duas tias austeras que o criaram, ora lenda de um amor perene com Sandra que fora em vida uma companheira fria e distante, ora visão do seu enterro, ora ajuste de contas com o mundo. Não poupa nada nem ninguém: nem o país supersticioso e crendeiro e opressivo em que cresceu, nem Deus, nem a elite cultural, académica, política e religiosa que configura a sociedade portuguesa, nem a filha que parece desdenhá-lo, nem sobretudo a si mesmo.
“Para Sempre” é um romance construído sobre uma saudade divagante pelos labirintos do passado e de um futuro previsível, sobre o vínculo entre a metafísica e a escatologia, com desabafos, frases suspensas, palavrões e paródia de discursos solenes e verborreicos. Paulo ainda não morreu, mas é já fantasma de si próprio. Marcado pelo problema da falta de comunicabilidade e de afeto com os mais chegados, é através do seu testemunho de homem sem máscaras que aprende a aceitar-se e a preencher o vazio existencial que o falecimento de Sandra deixou na sua vida. A carta de amor que Paulo gostaria de lhe ter enviado na juventude será trazida a lume, muito depois de esta ter falecido, na obra «Cartas a Sandra», variação e epílogo de «Para Sempre». Da dor da ausência nasce a palavra. Das palavras nasce a reflexão sobre a vida e o amor. E há uma trajetória individual que passa pela Guarda, cuja imagem flutua entre uma existência física e outra mental, para se constituir como espírito do lugar.
“Para sempre”: Regresso à casa vazia e primordial
“Naturalmente, a Guarda que descobri pelo olhar vergiliano era diferente daquela que conheci. Havia, decerto, as mesmas casas velhas e frias, um ambiente propício para se fazer boas amizades que estimulavam a liberdade interior e a consciência do mundo. “