Nestes dias de sol outonal fui até Baião espreitar o rio do alto das serras e visitar a casa de Tormes. Deslumbramento é o nome da paisagem que me foi dado contemplar. Por aqui, o olhar exulta, plana como uma águia, corre à solta pelas encostas verdejantes aqui ou ali declinando tons dourados de poente, amarelos e castanhos de fim de verão. Demora-se num detalhe da paisagem ou desce até ao rio, lá ao fundo, arrastando o manto de ouro e prata com a solenidade de um rei. Visto do alto, o rio é um segredo guardado desde o princípio do mundo na cumplicidade das serras. Um segredo adivinhado por vezes numa curva imprevista do vale.
O Outono é uma «tarde pintada/ por não sei que pintor», diz Miguel Torga numa das páginas do “Diário”. Depois de quase dois anos de confinamento e de tons cinzentos, entrar nesta tarde pintada, nesta tela infinita de tons enche-me de uma indizível felicidade. Mora aqui a tranquilidade. Duas palavras malditas na sociedade veloz em que vivemos: palavras que destoam do cansaço que orgulhosamente exibimos como prova da nossa produtividade e da competitividade, isto é, da auto-exploração a que nos submetemos em nome do progresso e de um reconhecimento que, como todas as utopias, se esconde num longínquo não-lugar do futuro. Não terá sido por acaso que este lugar inspirou um escritor cosmopolita como Eça de Queirós, seduzido pelas «léguas de horizonte» à vista a partir da Quinta de Vila Nova (Tormes) que então lhe coubera em herança, «vales lindíssimos, carvalheiras e soutos de castanheiros seculares, quedas de água, pomares, flores, tudo o que há naquele bendito monte». Assim como não terá sido por acaso “A Cidade e as Serras” o título escolhido para um dos últimos romances do escritor, em gestação desde o conto “Civilização” (1892) e apenas meio revisto para publicação quando este foi colhido pela morte em Neuilly-sur-Seine, corria o ano de 1900.
Ao chegar a Tormes, o olhar suspende-se num maravilhamento, igual ao que há mais de um século encantou o olhar do parisiense Jacinto ao transpor o portão de granito. Tudo fala, tudo tem voz por aqui, da pequena igreja cujas obras serviram de pretexto para a viagem de Jacinto à velha casa de pedra cujo vulto se adivinha para além do portão. Especialmente agora que é Outono. A hera que cobre os muros enfeitiça o olhar. Ilumina-o de cor e de vida. Observo os tons de fogo da Parthenocissustricuspidata, digo baixinho, só para mim, «esta pedra ainda espera dar flor» e nunca as palavras de Raul Brandão me pareceram tão certeiras. Estas pedras não esperam dar flor. Floriram. Dão cor. Por momentos, o meu olhar poisa entre as folhas de hera como se estivesse nos ramos de ácer de uma pintura Jakuchu.
Comovo-me com o estar ali, na proximidade do escritor, nesta que é também para mim uma casa familiar. Imagino-o descendo as escadas de pedra ao meu encontro, vestido com a cabaia de mandarim onde parecem mover-se dragões dourados. Estende-me a mão. A cor em volta incendeia a imaginação. O olhar enreda-se nas folhas, estremece ao vento e viaja pelos muros do tempo. Perde-se na lonjura de outras serras e nas cores de outonos distantes.
Dou por mim nas encostas do Souto do Bispo, numa das curvas da antiga estrada de ligação da Guarda ao Porto da Carne, o Mondego ali, no fundo do vale, deslizando em segredo por entre as árvores. Lugar de frescura, no verão, o Souto do Bispo era um refúgio escondido na penumbra dos castanheiros, cheirava a musgo e a fetos, a terra húmida, a voo de pássaros. Tinha o sabor da neve ou das cerejas em trança que as mulheres vinham vender por ali. No outono, uma tela encantada, pintada “sur le vif”: pinceladas e pinceladas de cores, tons, toda a gama do pantone outonal. Castanheiros, carvalhos, faias, pinheiros cobriam a encosta de um dourado poente que fascinava o meu olhar de criança. As folhas restolhavam sob os pés, ouvia-se o som cavo de um ouriço a cair no chão, o rumor do vento lá no alto. Cheirava a castanhas e a lenha. Era no outono que eu mais amava o Souto do Bispo.
Subi e desci vezes sem conta aquela estrada com o meu pai que trabalhava ao fundo do vale, junto às margens do rio. Fizesse chuva ou fizesse sol, parávamos sempre naquela dobra da estrada cumprindo o ritual sagrado de beber água da fonte e encher um garrafão para levar para casa. Beber aquela água, acreditava o meu pai, lavava a alma por dentro. Era um modo de comunhão com a serra. Um modo de regresso ao seio granítico de que ambos havíamos nascido. Lembro-me dele enchendo o copo que trazia no porta-luvas do carro e beber com sofreguidão, de me estender o copo ou dar a beber água das suas mãos em concha. O Souto do Bispo é para mim uma paisagem indissociável da imagem do meu pai lavando a alma na água da nascente sob o olhar complacente dos castanheiros. Indissociável dos cheiros e dos sons. Das cores de outono e do campo das telas impressionistas e, um século antes delas, das folhas de ácer e das cores divinas de Jakuchu.
A paisagem, afirmou Anne Cauquelin, é uma invenção cultural, uma forma histórica nascida do longo convívio do olhar com a pintura: só vemos o que já vimos ou já foi contado. Contemplar uma paisagem é colocar uma espécie de moldura a um fragmento particular da natureza, reconhecê-la como um quadro. Misto de percepção e de emoção, a paisagem concilia o individual e o global, interior e exterior: nas palavras de Michel Collot, ela representa a «singularidade de um ponto de vista que não exclui a abertura ao outro e ao mundo». Hoje, com a ecologia e as alterações climáticas na ordem do dia, a paisagem parece religar-nos cada vez mais ao meio ambiente e à experiência sensível da natureza. Convoca-nos para outros modos de racionalidade, novas formas de pensar e de habitar a casa comum do mundo, para a invenção de um «pensamento-paisagem» capaz de nos devolver a consciência da importância da paisagem que o êxodo rural, a industrialização e a urbanização crescentes a seguir à II Guerra Mundial fizeram esquecer. Sem domínio, binarismos ou oposições antes equilíbrio, coexistência e partilha. Uma significativa mudança em termos civilizacionais. Outra não terá sido, afinal de contas, a lição de Eça em “A Cidade e as Serras”, pela via da ironia e da divertida paródia do D. Quixote, com a criação do par Jacinto e Zé Fernandes.
Incêndios sucessivos devastaram o Souto do Bispo. Espalharam pelas encostas e na berma da estrada a cor da desolação. A doença da tinta e as vias rápidas da modernidade afastaram os viajantes da penumbra das árvores, dos lugares mágicos onde ainda se pode escutar o rumor dos castanheiros e das águas. Há muito que não dobro a curva encantada da estrada, talvez por temer o encontro com uma ausência. Não sei se as cores de Outono ainda ardem no Souto do Bispo. Se por ali um corre ainda um fio de água da nascente, vinda do coração da terra. Desses que nos lavam a alma por dentro e nos devolvem as cores da natureza como quem regressa a casa.
* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia